terça-feira, novembro 22, 2005

O fim do paraíso

Foi o motor do desenvolvimento de Ovar e chegou a ter 3.700
empregados. Agora, emagreceu e quer mudar-se para o Leste


Américo Rodrigues é um homem persistente. À porta da fábrica da Yazaki Saltano, em Ovar, distribui profusamente, com a ajuda de dois colegas, um comunicado do sindicato às centenas de trabalhadores que entram no turno das cinco da tarde ou que saem do turno das oito da manhã. Ao mesmo tempo, ouve com atenção as últimas queixas sobre a situação que se vive na empresa, onde paira a ameaça de desemprego para 500 dos seus 1.262 trabalhadores devido à deslocalização de uma parte da produção de cablagens para automóveis (Toyota Avensis e Mercedes R171) para a Eslováquia e Turquia, onde os salários são mais baixos e as grandes fábricas de automóveis estão mais próximas. Este dirigente do Sindicato das Indústrias Eléctricas do Centro já esteve numa reunião no gabinete do primeiro-ministro, onde informou os assessores de José Sócrates do que se passa. E liderou a greve contra a deslocalização convocada em Julho, que contou com a adesão de metade dos trabalhadores, segundo o sindicato.
Com 39 anos de idade, Américo está há 12 na empresa e recorda com saudade
os primeiros tempos, em que deixou de ser um desempregado de longa duração
da indústria de cordoaria e agarrou a grande oportunidade profissional da sua
vida. «Quando entrámos na fábrica tínhamos orgulho em trabalhar aqui, havia a
perspectiva de um emprego para toda a vida e fazíamos planos para o futuro,
porque os salários eram elevados», conta o sindicalista. A multinacional
japonesa, que tem outra fábrica em Gaia, chegou a empregar 3.700 pessoas «e
foi, sem dúvida, o motor do desenvolvimento de Ovar». Para muitos «era o
paraíso, o futuro era radioso».
Benjamim Rodrigues, da mesma idade de Américo, também dirigente sindical e
com 10 anos de Yazaki, confirma este clima optimista do passado. «O ambiente
da empresa era muito bom entre colegas e no relacionamento com as chefias.
Muitos dos casais que cá trabalham conheceram-se aqui». Mas os tempos
mudaram: «Hoje só há terrorismo psicológico e a administração está a criar um
ambiente para as pessoas se irem embora». Américo, colocado na secção de
manutenção de linhas, e Benjamim, da secção de corte, já foram chamados duas
vezes à direcção de Recursos Humanos para fazerem a rescisão amigável dos
contratos de trabalho, mas recusaram liminarmente. «O meu posto de trabalho
não está à venda», argumenta Benjamim Rodrigues.
A sua mulher também estava empregada na fábrica, mas, depois de vários meses de
baixa por causa de uma depressão, acabou por sair. «O trabalho é muito repetitivo e
a pressão é grande, o que torna frequentes as depressões no pessoal da Yazaki», explica Benjamim. A produção de cablagens para automóveis é um trabalho em linha, monótono, cadenciado, com prazos apertados e cronometrados para duas
tarefas: o corte automático (individual) e a montagem manual (colectiva). São
actividades muito intensivas em mão-de-obra, que explicam a grande
dimensão das fábricas, cada uma empregando centenas ou milhares de
pessoas.
Mas tudo isto não impede que o desempenho da Yazaki Saltano continue a ser
bastante bom. «Somos a melhor fábrica do grupo na Europa e a terceira melhor
no mundo, em termos de produtividade», salienta o mesmo operário. «E, por
isso, não é por falta de qualidade dos nossos produtos ou por perda de
mercados que se fala de deslocalização, mas apenas por uma única razão - a
redução de custos», acrescenta Américo Rodrigues. O dirigente sindical
reconhece que «não é necessária grande qualificação do pessoal para produzir
cablagens automóveis, e a inovação tecnológica, com a introdução da fibra
óptica e de novas máquinas, diminui o número de componentes e reduz as
necessidades de mão-de-obra».
Cláudio Silva explica, por sua vez, que «ninguém sabe ainda quem vão ser os
500 trabalhadores a dispensar. Talvez os do turno das cinco, que custam mais à
empresa, devido aos subsídios do trabalho nocturno». Este delegado sindical, de
27 anos de idade, está na fábrica desde os 17 e recorda que nessa altura «não
havia mão-de-obra suficiente em Ovar para as necessidades da Yazaki, que teve
de ir buscar gente a Aveiro, Porto e Gondomar». O pessoal da Yazaki é jovem,
com uma idade média abaixo dos 30 anos, e um nível de escolaridade entre o 9.º
e o 12.º ano. Mas encontrará alternativas de emprego? «Em Ovar e nos
concelhos mais próximos não encontra, nem na indústria nem no comércio».
Por isso, quando as ameaças de deslocalização se tornaram mais reais, a
Comissão Sindical da empresa fez propostas de diversificação da produção
para viabilizar a fábrica e manter os postos de trabalho. E no final de 2004 a
administração anunciou a hipótese, reforçada em Outubro passado, de virem a
ser fabricados painéis solares e contadores de gás, produtos de maior valor
acrescentado, que exigem maquinaria sofisticada e operários mais qualificados, e
que já são produzidos pela Yazaki noutros países. Os responsáveis da empresa não
fazem neste momento quaisquer declarações sobre o futuro, alegando que
estão a decorrer negociações entre a Yazaki Europa e o Governo português (Agência
Portuguesa de Investimento), informação que o Ministério da Economia confirma.
«Mas a verdade é que a desmontagem e embalagem de máquinas para a Eslováquia
e Turquia tem continuado», revela Américo Rodrigues. Foi o que aconteceu com uma linha de produção que ocupava 60 pessoas, estando agora a empresa a tentar colocá-las noutros sectores. Fernanda Tavares, directora de Recursos Humanos e porta-voz da Yazaki de Ovar, salienta entretanto que «os custos de mão-de-obra e a distância das grandes fábricas de automóveis são desvantagens evidentes para o nosso país».
As grandes multinacionais de cablagens que se instalaram em Portugal estão, de
facto, em debandada ou têm planos para reduzir drasticamente a sua actividade.
Parece um movimento surpreendente num país onde o sector automóvel é o
segundo maior exportador nacional, e onde existe uma importante indústria de
componentes, que em 2004 facturou mais de 4,2 mil milhões de euros e deu
emprego a 40 mil pessoas. Mas é inevitável, com a globalização a bater-nos à
porta, e tanto os dirigentes sindicais como os governantes que autorizaram os
projectos de investimento dessas multinacionais sabiam que, mais tarde ou mais
cedo, nomes sonantes como a Valmet, a Valeo, a Woco, a Alcoa, a Delphi, a
Lear ou a Yazaki saltariam de Portugal para outras paragens onde a
mão-de-obra é mais barata e os grandes fabricantes de automóveis estão mais
perto, como no Leste europeu.
Aloísio Leão, presidente da Associação de Fabricantes da Indústria Automóvel
(AFIA), assinala que «as cablagens representam 15% das vendas e 31% do
emprego no sector das componentes para automóvel, o que mostra a
importância e os perigos que podem derivar da deslocalização, mas fora desta
área o quadro não é tão negro, porque a indústria portuguesa tem vindo a
apostar em produtos de maior valor acrescentado, com resultados muito mais
animadores». O dirigente da AFIA diz que nas empresas nacionais do sector
«não há uma estratégia de deslocalização mas antes de crescimento, e temos
seguido os nossos principais clientes - os grandes fabricantes de automóveis -
para o Leste europeu e para o Brasil, abrindo aí novas unidades industriais». Em
contrapartida, Aloísio Leão recorda que desde 1990 houve pelo menos 15
multinacionais que abandonaram Portugal ou reduziram a sua actividade. E
salienta que, «nos próximos anos, o Leste vai continuar a ser atractivo, não só
pelos incentivos disponibilizados pela UE mas também pela flexibilidade laboral,
pelos custos de transporte e da mão-de-obra, que tem uma formação de base
melhor do que a nossa». Por isso, pode ser uma oportunidade de negócio para a
indústria portuguesa, como salienta Artur Costa, especialista do sector na
consultora Inteli-Inteligência em Inovação: «As empresas do Leste que fornecem
os grandes construtores automóveis têm carências de tecnologia, automação,
qualidade e gestão moderna, enfim, fazem lembrar os nossos fabricantes de
componentes de há 20 anos».
Ovar, com quase 20 mil habitantes, é uma cidade onde 65% da população activa
vive da indústria, sendo a Yazaki o seu maior empregador. Com os ventos da
globalização, o desemprego está a crescer rapidamente no concelho, atingindo
já mais de 11% da população activa, um valor superior à média nacional (7,2%).
«Até há poucos anos Ovar era o concelho com maior empregabilidade no distrito
de Aveiro, mas agora tem mais de três mil desempregados (1/3 do total do
distrito)», afirma o presidente da Câmara de Ovar. Manuel Oliveira sublinha que
a autarquia «apostou demasiado nas facilidades de localização de empresas
sem grandes critérios». O autarca defende, por isso, «alternativas a este modelo
nas indústrias de valor acrescentado, serviços e turismo, como o Sportsforum,
que vai criar 700 novos empregos em Ovar».
Este projecto de 30 milhões de euros é uma parceria entre o grupo Amorim e a
Câmara e introduz um novo conceito em Portugal, que associa um centro
comercial a uma área desportiva. «Mas o Sportsforum só vai estar pronto em
2006 e os ordenados praticados no comércio são em geral mais baixos que na
indústria, rondando os 374 euros do salário mínimo nacional», contrapõe
Américo Rodrigues. E lembra que o salário médio na Yazaki atinge os 700 euros,
mais prémios e regalias sociais. Por isso, o dirigente sindical não desarma: «Vou
resistir na empresa até ao fim. Só quando não puder mais é que me vou
embora».(in «Expresso»)

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