domingo, março 12, 2006

O triunfo do anti-Santana
e do anti-Guterres



José Sócrates é um líder cioso da sua autoridade. No primeiro ano de Governo, só uma vez a sua palavra foi contestada em Conselho de Ministros e a audácia valeu a demissão ao temerário ministro. Entre as reticências de Campos e Cunha ao programa de investimentos do Estado e a aposta do primeiro-ministro nesse pacote pensado para relançar a economia e injectar optimismo no discurso, o chefe do Governo nem hesitou: ficou o programa e saiu o ministro. Foi Sócrates quem ganhou as eleições, é ele o epicentro da actividade governativa. É uma questão de feitio, mas também é uma marca política. Depois da montanha-russa que foi o consulado de Santana Lopes, era fundamental para o novo primeiro-ministro marcar as distâncias.
No dia em que tomou posse, com mais de 2,5 milhões de votos no bolso e 121 deputados no Parlamento, Sócrates assumiu a enorme expectativa que recaía sobre si. "O povo falou e falou claro. Por sua vontade, abre-se hoje um novo ciclo na vida política portuguesa." Não era apenas um novo Governo, note-se, mas "um novo ciclo", ambição alimentada por uma maioria absoluta e uma perspectiva de quatro anos de poder.
A responsabilidade traduzia-se numa nova forma de governar e num novo projecto político. Na forma, podia resumir-se o novo primeiro-ministro como o anti-Santana: contido, metódico, cultivando a distância que acrescenta gravidade ao poder. No conteúdo, era o anti-Guterres: resoluto, obstinado, pronto a assumir as guerras que escolhia.

O estilo

Foi o estilo que primeiro saltou à vista. Na sala do Palácio da Ajuda onde Santana tinha tomado posse com um discurso atabalhoado, saltan- do folhas e baralhando parágrafos, como se fosse um flash forward da sua governação, Sócrates fez um discurso incisivo, com um punhado de ideias fortes, numa cerimónia sem os salamaleques da praxe.
O texto fora escrito pelo próprio Sócrates, com a colaboração de Pedro Silva Pereira e de José Almeida Ribeiro, que viriam a ser, respectivamente, ministro da Presidência do Conselho de Ministros e assessor político do primeiro-ministro. Terá havido outras achegas, mas no essencial foi um trabalho em petit comité, como Sócrates gosta. É assim o método socrático: os debates são em circuito fechado e o líder faz a síntese sem deixar que sobrem discussões para reuniões mais alargadas.
Sócrates dita prioridades, traça agendas, decide soluções, mas também é ele quem dá a cara pelas políticas. "O número dois do Governo é José Sócrates", brinca um dos seus colaboradores, para resumir uma evidência - ao longo deste ano, a preponderância do primeiro-ministro não deixou espaço para que qualquer outro governante se afirmasse como segunda figura, ao contrário do que acontecia com Durão ou Guterres. Talvez isso tenha acontecido com Campos e Cunha, quando o discurso do défice monopolizava o debate - mas acabariam por sair da ribalta (o ministro e o défice).
António Costa é o número dois na hierarquia, mas da única vez que ficou sozinho no palco, durante as férias de Verão do primeiro-ministro, saiu chamuscado com os incêndios. Silva Pereira é o braço-direito de facto, tem o estatuto de porta-voz, mas não o de número dois. Mesmo no PS deixou de haver essa segunda figura desde que Sócrates assumiu a coordenação da permanente, substituindo Coelho. Nem Cavaco Silva, que tinha essa fama, concentrou tanto poder - Fernando Nogueira era um verdadeiro número dois, Dias Loureiro era o homem do partido.

A agenda

Na tomada de posse, Sócrates apresentou uma agenda reformista que se propunha enfrentar "atavismos e bloqueios". Ficou como símbolo da nova agenda a promessa de pôr fim ao monopólio das farmácias na venda de medicamentos. Depois, na sua primeira ida ao Parlamento, acrescentou outra proposta com a mesma carga simbólica, a redução das férias judiciais para um mês.
A julgar pelas sondagens, ao fim de um ano Sócrates pode dar-se por satisfeito com o pouco desgaste que regista. O PS foi cilindrado em duas eleições - teve o seu pior resultado dos últimos 20 anos nas autárquicas e Mário Soares ficou-se pelos 14% nas presidenciais -, mas o Governo não parece beliscado.
Independentemente da aferição de promessas cumpridas ou por cumprir (ver páginas seguintes), uma parte deste bom resultado nas sondagens poderá atribuir-se ao desempenho mediático de Sócrates, que tem sabido capitalizar as boas notícias e gerir os maus momentos - umas vezes eclipsando-se, outras assumindo as dificuldades, como fez ao dar a cara pelo pacote restritivo apresentado em Maio.
Com raras excepções em que a actualidade lhe baralhou a agenda e o obrigou a expor-se mais do que gostaria - a demissão de Campos e Cunha, os incêndios de Verão, as nomeações de Fernando Gomes e Armando Vara, os fracassos do referendo ao aborto... -, o líder socialista seguiu quase sempre o guião preparado em São Bento, com timings e iniciativas pensadas para dar o maior impacto às prioridades do Governo.

O mediatismo

A melhor demonstração do sucesso desta estratégia é recente: depois de vários reveses com o célebre Plano Tecnológico, depois do calvário presidencial, à beira de receber as más notícias dos números do desemprego, o Governo esmagou o alinhamento noticioso com anúncios de investimentos estrangeiros e até puxou Bill Gates para a foto. Como se viu esta semana, é fértil a imaginação de Sócrates para protagonizar "números" mediáticos, com apresentações high tech e reluzentes frisos de notáveis.
O primeiro-ministro tem repetido que não governa para as sondagens e, em rigor, não pode ser acusado desse pecado. Pelo contrário, tem dado razões para greves e manifestações. Mas valeram a Sócrates a perda de influência dos sindicatos e a sua mestria a equilibrar protestos com outros de sinal contrário: a razão do descontentamento de uns era o motivo de satisfação de outros.
Por outro lado, o Executivo fez um grande esforço de pedagogia das reformas e dos sacrifícios, enquadrados pela crise internacional e embrulhados na promessa de que "desta vez toca a todos". Em método que ganha não se mexe - à beira do primeiro aniversário do Governo, a prenda do primeiro-ministro foi um aviso aos portugueses: "O mais difícil está por fazer." Jogar com baixas expectativas sempre foi uma das especialidades de Sócrates.

Filipe Santos Costa Rodrigo Cabrita in «DN»

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