quarta-feira, setembro 06, 2006

O Foral Manuelino de Ovar

Há poucos anos, na cidade de Ovar, adquirimos um livro que nos reservava uma agradável surpresa. Trata-se de uma obra da autoria do Padre Miguel de Oliveira, intitulada "Ovar na Idade Média", que foi editada pela Câmara Municipal de Ovar em 1967.
Chamou-nos particularmente a atenção uma passagem do capítulo em que o autor se debruça sobre o foral manuelino de Ovar.
O autor aborda vários aspectos deste documento de entre os quais as profissões dos habitantes referidos no foral:
«Quanto a profissões, além da de sapateiro, aparecem as de alfaiate, tecelão, pescador, tanoeiro e gaiteiro.»
Foi para nós uma surpresa que imediatamente fez pensar na Galiza. Existem provas documentais, do século XVI e XVII, da contratação formal de gaiteiros desta região que em troca dos seus serviços recebiam uma remuneração monetária.
Decidimos consultar o referido foral, que encontrámos transladado pelo Padre Miguel Oliveira na revista «Arquivo do Distrito de Aveiro», vol. IX de 1943.
A profissão de um tal Joanne Annes é referida numa rubrica do foral que começa assim:

«(TITOLLO DOS PORTADOS DAS CASAS DE OUAR DOS QUAAES SE ASEMTARÃO AQUY OS NOMES DAS PESSOAS QUE OS ORA TEM COM TAL EMTEMDIMENTO QUE POSTO QUE O NOME DAS PESSOAS SE MUDE O FORO NUMCA SE MUDARA EM QUAÃESQUER SOÇESSORES QUE TIUEREM:

Pedro eañnes capateiro traz tres casas a par do paço de que paga vimte e sete rreais».

E um pouco mais adiante:

«Gomcallo fernamdez e outros pollos moynhos que foram de Gomcallo magro trinta e seis rreais E paga pollo moynho de pero do carualhall dezoito rreais E por outro que fez Joane annes gaiteiro dezoito rreais E por outro que fez este mesmo gaiteiro dezoito rreais Outro que fez fernam luis na varzea dezoito rreais».

O nome deste gaiteiro é referido mais atrás no foral, logo após o início deste, mas sem que a sua profissão seja especificada:

«Primeiramente no dicto lugar de cabanooes desde a estrada que vay do porto pera aveiro da bamda de çima pera o leuamte ou soaão nas lauoiras anbas jazem as herdades abaixo decraradas com seus foros hy asemtados As quaaes pagam de oito hûu das nouidades que colherem a saber hûa cortinha da ygreia que traz maria annes homde chamam o Fajoo comtra a leira da ygreia que traz
nos borgoões pagam o dicto pro de oito hûu».

O nome do gaiteiro é então quase de seguida mencionado na seguinte passagem:

«Jan aires traz tres talhos de chaãos que comprou de guilhelme Aluaro gil de oouar luis do barreiro pollos tres talhos que jazem no Fojoo que sam da capella de Ruy ferreira (Joanne annes de outro talho de Fojoo da herdade de guilhelme (Pedro eannes das freitas por dous talhos de capella que trazia Joham pirez de cabanoões.»

Quanto à contratação de gaiteiros na Galiza em tempos recuados, é de consultar um artigo do “Anuário da Gaita” do ano de 1995, da autoria de Ramiro Couce, intitulado “Contratación de gaiteiros, ferreñeiros e tamborileiros”, que nos oferece a descrição de vários destes contratos assinados entre 1571 e 1699.
Na grande maioria dos casos apresentados no referido artigo, as entidades contratantes são confrarias que têm o nome do seu santo padroeiro (Confraria de San Roque, de Santa Eufémia, de Santa Veracruz...) ou o nome de uma profissão que é a dos seus membros (Confraria dos alfaiates, dos sapateiros, dos mareantes...).

Em cada contrato ficava definido quais as festividades a que o músico tinha que comparecer com o seu instrumento musical, ficando também por vezes estabelecido que o gaiteiro teria que comparecer a um certo número de ensaios em que tocaria, por exemplo, acompanhando a dança que os confrades executariam por ocasião do Corpus Christi.
A partir da descrição dos documentos no artigo do Anuário constata-se que a obrigatoriedade de comparência do gaiteiro por ocasião da festa do Corpus Christi é uma constante de quase todos os contratos. Outras festividades que surgem também referidas com alguma frequência são o Natal e a Páscoa.
Os contratos tinham durações muito variáveis: tanto eram feitos contratos que previam a actuação do gaiteiro uma única vez, como contratos que tinham a vigência dum ano, vários anos ou até de toda a vida do músico.

Caso um destes contratos não fosse cumprido, o gaiteiro em falta deveria sofrer a pena que contratualmente tinha ficado estabelecida. Por exemplo: se no dia previsto o músico não comparecesse teria de pagar uma multa no mesmo valor que tinha ficado acordado que ele receberia pela sua actuação.

Será que este Joanne Annes, referenciado no Foral de Ovar como sendo gaiteiro, se poderá incluir nesta categoria de gaiteiros?
Não sabemos se em Portugal terão existido documentos análogos aos descritos acima, nem se alguém já terá investigado este assunto. De qualquer modo, este foral é uma pista preciosa
e deve constituir um incentivo para que esse trabalho de pesquisa seja realizado o mais brevemente possível...

Henrique Oliveira

Publicado em «Gaita-de-Foles» - ( revista da APEDGF ) ; nº1- Abril de 2001
(direitos reservados)

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