sábado, dezembro 23, 2006

(Dou um doce. Assis...)



NAUSICAA


1

Emoção imprópria para cardíacos chego à beira da Ria arrumo o carro
a ver as damas que tricotam no café do Guedes e —
quem descubro inclinada para a varanda? dou um doce! Nausicaa!

Nausicaa estrelicada nuns jeans made in Oporto
a vera filha de Alcínoo que me espera
me fala assim que eu entro «ôi» (em brasilês)
deixando-me interdito que até sou homem com o epigastro reforçado
para as piores surpresas da vida — Nausicaa
chupando um eroticão dum sorvete!

2

Aliso a barba tusso baixo vou a dizer não sei que iambo
porém já ela paga
a despesa ao balcão que entre mil reconhecera o triste
naufragado de mim e pois é à la carte
intimidades mansas em palácio?
carícias numa otomana e eu com o desejo bruto?
estas coisas não deviam escrever-se ligeiramente

3

Intertexto luso-americano: certa miss Tavares de Newark NJ «despe-me» quando
abandono o local imaginando ela que estamos no Rainbow Room e a orquestra
ataca aqueles slows basto marmelativos mas eu (e só um hotentote não perceberia) não
sei nesta altura do cozinhado poético como conciliar tradição e Realpolitik; sendo
conhecido que a minha educação foi maneirista

4

Nausicaa! e quero-a mesmo? desfazer-lhe a trança
enrolada presa em caracol a um pente castanho?
dizer-lhe quanto sonhei com os seus peitos sobre o mar?
negras noites de tempestade e eu insone?
porra para as deidades de segunda
negras noites e a proa retesada?

5

Vem no guião que a bela ao surpreender-me
no areal das Quintas do Norte para o Torrão do Lameiro
dias atrás chonava eu nuzinho em pêlo o que acontece
teve uma pena do carago, ai, e logo ali jurou
amar (devia de estar lindo salvo do gigante de um só olho
ondas de sete e oito metros
puta vingança)
ou só dementres agora sim nos víamos? 2.400 anos depois
ela de jeans com uma vulgar T-shirt atada à cintura
eu no meu camisolão de lã doméstica
CT aceso óculos Rayban o jornal dobrado

és mesmo tu? achei-te? que pretendes
nas Murtosas das Itacas? pára já!
folguemos sobre os lírios dessas dunas!

6

Digo porém que não: sou um senhor magoado
pelos trabalhos e os dias
e o mais simples verso
tem grandes manchas cicatriciais
embora não se note

7

Nausicaa limpa a boca as damas entrefalam
de Newark a miss astuta finge ler
o seu James Claveil oriental

posso dar-vos boleia até Ovar

e o galicismo cai: que de soluços
nas dobras da camisa! e que de grossas
palpitações no seio! a liricalha
lusa à mercê de um tal pedante!

bye-bye honey; a carriola pisca a luz do óleo;
foi bonito e
foi helénico e foi
aquilo que se conta um dia aos netos

8

De ti Nausicaa aparto a minha vara
de carne sensível
e não no areal me viste, era uma sombra
e pois que nesta vivo é força que ela viva
a minha simples musa de estamenha

o cego, o filho de Ana, o bom do Lope
companheiros certos sabiam-na toda


Fernando Assis Pacheco

Sem comentários: