sábado, agosto 17, 2024
Se ainda não escolheu a sua leitura de férias, aceite esta sugestão. Há de gostar de levar consigo este pequeno livro, dedicado ao tempo antigo desse segmento da nossa costa submetido a tantas modificações orográficas, urbanísticas e antropológicas.
É também uma parte da memória pessoal do seu autor, já que Domingos Tavares nasceu em Ovar, “terra-mãe dos pescadores da arte da xávega”.
O antigo dirigente da Faculdade de Arquitetura do Porto que um dia defendei a preservação do cibe-teatro, conhece muito bem toda esta região e a história arquitectónica que a modela e retrata desde finais do século XIX.
Este livro tem o epicentro geográfico da sua própria vida: “Recordo o casarão enorme levantado na praia como guarda avançada de uma estranha urbanidade formada, sobre dunas de areia, por pequenas construções de madeira que desenhavam as ruas intermitentes do Furadouro” (p. 13; itálico meu).
O cenário era de quase epopeia primitiva, com grandes barcos de aguçada proa levantada recolhidos entre palheiros de tábua pintada a cores escuras, com a capela do Senhor da Piedade (que em 1766 substituiu minúsculo oratório de madeira) a coroar em pedra e cal o fio do horizonte para quem chegasse de Ovar pela Estrada do Mar, cinco quilómetros de boa sombra debaixo de frondosos choupos. Como se esquece isso?
Mais do que quaisquer outros, Granja e Espinho haveriam de ser modelo para estâncias balneares emergentes nessa extensa linha de costa, com os seus pequenos hotéis ou hospedarias, mas quando por ali passou em 1864, para o seu roteiro das Praias de Portugal, Ramalho Ortigão reduziu o Furadouro a uma linha e meia: “O Furadouro e a Costa Nova, frequentadas por algumas famílias de Aveiro e seus subúrbios” (ed. Frenesi, 2002, p. 150). A “moda dos banhos de mar” por um número cada vez maior de crentes nas propriedades terapêuticas da água salgada (p. 17) fazia-se em Setembro e Outubro, um tradicional período de repouso após as colheitas, na vizinhança das comunidades dos “operários do mar” que aos olhos das famílias ociosas recolhiam redes, desventravam, descamavam peixe e salgavam-no, ou movimentavam gado de tracção, deixando na praia os seus dejectos, resíduos e pestilências piscícolas e bovinas que os ventos de Noroeste típicos do Verão espalhavam incomodamente. Noutros tempos também aquelas comunidades piscatórias haviam sido residentes sazonais no Furadouro, porquanto “no Inverno a pesca era transferida para os esteiros da Ria” de Aveiro (p. 14) e os pescadores moravam na Arruela, arrabalde da vila de Ovar.
Domingos Tavares descreve com a sua habitual minúcia e informação sustentada — verdadeiro trabalho de relojoeiro mecânico — toda essa vida laboriosa e pitoresca (que outrora serviu de motivo a pintores como Joaquim Lopes ou João Vaz) para concluir que “os palheiros dos pescadores ajudam a explicar a evolução formal para o urbano, no quadro da nova economia balnear” (p. 8), e num panorama mais geral, nunca perdido de vistas pelo autor, que “a contaminação parece assumir, muitas vezes, o papel principal no progresso das artes” (p. 9), ou, mais ainda, neste fio de navalha de popular a erudito, que no fim das contas “as razões da arte estão intimamente ligadas às razões da vida” (p. 7).
https://www.ovarnews.pt/casas-na-duna-leitura-obrigatoria-neste-verao/
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