terça-feira, julho 23, 2024

"Uma em cada duas pessoas poderá ter cancro, mas muitos dos letais estão a tornar-se controláveis." Entrevista do Observador ao investigador Ron DePinho
Filho de pais portugueses de Ovar que emigraram para Nova Iorque no final dos anos 30 do século passado, Ron DePinho é, aos 69 anos, um dos maiores especialistas norte-americanos na área do cancro. A morte do pai (vítima de cancro no cólon) acabou por levar DePinho a investigar a fundo os mecanismos da doença, na esperança de que outras pessoas não vejam o cancro ganhar a batalha contra aqueles que lhes são mais próximos. Atualmente, diz o especialista, algumas projeções já admitem que uma em cada duas pessoas venha a ter um diagnóstico de cancro ao longo da vida — mas também admite que a evolução científica está a contribuir para que cada vez mais tipos letais da doença possam ser curados.

Ron DePinho fundou e dirigiu o Belfer Center for Applied Cancer Science, que se dedica a traduzir as descobertas científicas em medicamentos e tratamentos que melhoram a vida dos doentes. Foi, durante seis anos, diretor do MD Anderson Cancer Center, o hospital mais bem classificado dos EUA em termos de cuidados oncológicos, onde concebeu e lançou o Programa Cancer Moon Shots, destinado a converter mais rapidamente os conhecimentos em reduções drásticas do sofrimento e da morte por cancro.

É, neste momento, professor do Departamento de Biologia Celular do MD Anderson, onde lidera um laboratório com 20 investigadores. Fundou várias empresas de biotecnologia privadas — que têm criado novos medicamentos e técnicas de diagnóstico para doentes com cancro — e é consultor de muitos governos e do próprio Vaticano.

Visitou há poucos dias Portugal (onde vem com frequência), para dar uma palestra e entregar três projetos a Ana Lázaro — Bolsa de Investigação em Cancro. Deu esta entrevista ao Observador, por email, sobre o aumento expectável da incidência da doença. O especialista identifica o melanoma, o cancro do pâncreas e o cancro colorrectal como aqueles que terão um crescimento mais acelerado no futuro.

Ron DePinho elogia a eficácia das terapêuticas personalizadas, mas alerta para o elevado custo dos medicamentos personalizados, “um desafio significativo” para os sistemas de saúde, com que Portugal também se está a deparar. Em 2022, a despesa com o Pembrolizumab (indicado para vários tipos de cancro) disparou mais de 40% para os 60 milhões de euros.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Os portugueses adoram o sol, mas temos de aprender a respeitá-lo e a utilizar métodos de proteção adequados”

Perdeu o seu pai com cancro do cólon, mas nessa altura já trabalhava num instituto dedicado à investigação do cancro, o Dana-Farber Cancer Institute da Harvard Medical School.

O que o levou a entrar nesta área?

Desde muito jovem que as ciências biológicas e os mistérios da vida me fascinavam. O meu laboratório no Dana-Farber centrava-se em questões biológicas fundamentais. A perda do meu pai com cancro do cólon foi uma experiência pessoal profunda, que redirecionou o meu projeto científico. Procurei não só estudar os mecanismos do cancro, mas também converter esses conhecimentos em novos medicamentos contra o cancro, na esperança de que outras famílias não sofressem a perda de um ente querido devido a esta terrível doença.

Fundei e dirigi o Instituto Belfer para a Ciência Aplicada ao Cancro, o que me permitiu reunir uma equipa multidisciplinar centrada na tradução das descobertas científicas em novas terapias que pudessem fazer uma verdadeira diferença na vida dos doentes.

Prevê-se que a incidência do cancro continue a aumentar nos países desenvolvidos. Até que ponto chegará?

Prevê-se, de facto, que a incidência do cancro aumente, sobretudo nos países desenvolvidos. Este aumento é impulsionado por vários fatores, incluindo o envelhecimento da população, fatores relacionados com o estilo de vida, como a alimentação e a atividade física, e exposições ambientais.

"Descobrimos recentemente um medicamento que reduz drasticamente as características do envelhecimento em ratos, o que pode ser promissor para os doentes"

Ron DePinho, investigador na área do cancro

Algumas projeções sugerem que até uma em cada duas pessoas poderá ter cancro em algum momento da sua vida. Estima-se que, até 2030, a incidência total de cancro nos EUA aumente cerca de 45%. No entanto, é importante notar que os avanços na deteção precoce, prevenção e tratamento também estão a melhorar drasticamente as taxas de sobrevivência e a qualidade de vida de muitos doentes com cancro.

Existe alguma forma de travar o aumento esperado dos casos de cancro?

Embora não seja possível travar completamente o aumento dos casos, existem várias estratégias altamente eficazes que podem atenuar significativamente esta tendência. As iniciativas de saúde pública centradas na prevenção, como a promoção de estilos de vida saudáveis, a redução do consumo de tabaco e álcool e o aumento da vacinação contra vírus como o HPV e a hepatite B podem ter um grande impacto. Se uma família tem um historial de cancro, pode ser útil obter aconselhamento genético para desenvolver uma estratégia de prevenção e deteção.

Além disso, os avanços no rastreio e na deteção precoce podem detetar cancros em fases mais precoces e tratáveis. Os novos avanços nas análises sanguíneas de deteção do cancro também podem ajudar, embora seja necessário mais trabalho nesta área para concretizar todo o seu potencial. A adoção de um estilo de vida saudável e a realização de rastreios regulares dos cancros da mama, do cólon e da pele podem reduzir drasticamente a incidência do cancro e o risco de morrer de cancro.

Que tipos de cancro registarão o aumento mais rápido de casos nos próximos anos?

Prevê-se que determinados tipos de cancro registem um aumento mais rápido da incidência. Por exemplo, o cancro do fígado está a aumentar, em parte devido ao aumento das taxas de hepatite C e de doença hepática gorda não alcoólica. O melanoma, um tipo de cancro da pele, também está a tornar-se mais comum, provavelmente devido ao aumento da exposição à radiação ultravioleta do sol e das camas de bronzeamento artificial. Os portugueses adoram o sol, mas temos de aprender a respeitá-lo e a utilizar métodos de proteção solar adequados.

Por último, prevê-se que os cancros associados ao envelhecimento, como o cancro do pâncreas e o cancro colorrectal, aumentem à medida que a população envelhece.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Muitos cancros letais estão a tornar-se cada vez mais controláveis graças aos avanços da ciência”

Atualmente, trabalha no MD Anderson Cancer Center, o mais prestigiado hospital e centro de investigação dedicado ao cancro dos Estados Unidos, do qual já foi diretor.

Quais foram as suas maiores descobertas e que contributos estão os investigadores deste centro prestes a dar ao mundo?

No MD Anderson Cancer Center, a nossa missão é eliminar o cancro através de programas marcantes que integrem os cuidados aos doentes, a investigação e a prevenção. Os professores do MD Anderson fizeram grandes descobertas no domínio do cancro, incluindo o desenvolvimento da imunoterapia, que valeu ao Dr. James Allison o Prémio Nobel. Durante a minha presidência, lançámos a iniciativa “moonshot” contra o cancro, que inspirou o esforço nacional do Presidente Biden. Além disso, alargámos o nosso programa global para divulgar os nossos conhecimentos e ajudar os doentes de todo o mundo.

No meu próprio laboratório, contribuímos para os fundamentos genéticos e moleculares do cancro, que levaram ao desenvolvimento de terapias específicas. A nossa investigação sobre os telómeros e a telomerase trouxe conhecimentos importantes sobre os mecanismos do envelhecimento e do cancro.

"Prevê-se que aumentam os cancros associados ao envelhecimento, como o cancro do pâncreas e o cancro colorretal"

Descobrimos recentemente um medicamento que reduz drasticamente as características do envelhecimento em ratos, o que pode ser promissor para os doentes, dado que o avanço da idade é o fator de risco mais importante para o desenvolvimento do cancro. Esperamos que, nos próximos anos, este medicamento anti-envelhecimento seja submetido a ensaios clínicos para uma série de doenças associadas à idade.

Também detém várias empresas de biotecnologia. Que inovações destaca?

Através das minhas empresas, concentrei-me em traduzir as descobertas científicas de ponta em tratamentos práticos que beneficiem os doentes. Várias das minhas empresas desenvolveram medicamentos específicos que estão a ajudar doentes com cancro do rim, do fígado e vários tipos de cancro do sangue. Estou muito orgulhoso das nossas equipas e das suas contribuições para a humanidade.

O Ron também foi cofundador e ajudou a criar a Eliminate Cancer Initiative, que desenvolveu um plano estratégico e mobilizou quase 200 milhões de dólares em financiamento para combater o cancro cerebral altamente letal, o glioblastoma. Que esperança existe para estes doentes?

O glioblastoma é uma forma de cancro cerebral altamente agressiva e difícil de tratar, e continua a ser um dos cancros mais letais. Ao mesmo tempo, é importante ter em conta que, na última década, muitos outros cancros letais estão a tornar-se cada vez mais controláveis graças aos avanços da ciência. Por isso, há esperança para os doentes com glioblastoma através da investigação em curso e de tratamentos inovadores. Os avanços nas técnicas cirúrgicas e nas tecnologias de imagem melhoraram a precisão da remoção do tumor, enquanto os avanços na radioterapia e na quimioterapia também contribuíram para melhores resultados.

"A imunoterapia está a mostrar potencial no tratamento do glioblastoma. Há esperança para os doentes"

Ron DePinho, investigador na área do cancro

Uma das áreas de investigação mais promissoras é a medicina personalizada, em que os tratamentos são adaptados ao perfil genético individual do tumor do doente. Os investigadores estão a identificar mutações genéticas específicas e alvos moleculares que podem ser atacados com terapias direcionadas. Além disso, a imunoterapia, que utiliza o sistema imunitário do corpo para combater o cancro, está a mostrar potencial no tratamento do glioblastoma, com ensaios clínicos que investigam os inibidores do ponto de controlo imunitário.

Estão também a ser implementadas tecnologias emergentes, como os campos de tratamento de tumores, que utilizam campos elétricos para interromper a divisão das células cancerígenas. Estas abordagens inovadoras, combinadas com a investigação em curso sobre a biologia do glioblastoma, oferecem uma nova esperança aos doentes e às suas famílias.

Embora o glioblastoma continue a ser um desafio formidável, os progressos contínuos na investigação e no tratamento estão a trazer para a ribalta opções novas e mais eficazes. É muito importante que os governos continuem a apoiar a investigação sobre o cancro nas suas universidades.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Até metade de todos os cancros podem ser prevenidos”

O futuro do tratamento do cancro é a medicina de precisão ou individualizada, que permite direcionar o tratamento e demonstra uma maior eficácia. Quão avançados estamos neste domínio?

A medicina de precisão, também conhecida como medicina individualizada ou personalizada, é o futuro do tratamento do cancro. Fizemos progressos significativos nesta área, revolucionámos a forma como diagnosticamos e tratamos o cancro. A medicina de precisão envolve a adaptação dos tratamentos às características genéticas e moleculares únicas do tumor de cada doente, e leva em conta o estado de saúde e o estilo de vida do doente.

Os avanços na sequenciação genómica têm sido fundamentais para este progresso. Podemos agora identificar mutações e alterações genéticas específicas que impulsionam o crescimento do cancro, o que nos permite desenvolver terapias direcionadas que são mais eficazes e têm menos efeitos secundários do que os tratamentos tradicionais. Estas terapias orientadas podem atacar especificamente as células cancerígenas, poupando os tecidos saudáveis.

"A medicina de precisão é o futuro do tratamento do cancro. Ataca especificamente as células cancerígenas, poupando os tecidos saudáveis"

Ron DePinho, investigador na área do cancro

A imunoterapia é outro componente crucial da medicina de precisão. Tratamentos como os inibidores do ponto de controlo imunitário e as terapias com células CAR-T e CAR-NK demonstraram um sucesso notável em certos tipos de cancro, ao aproveitarem o sistema imunitário do doente para combater a doença. Além disso, a integração de grandes volumes de dados e da inteligência artificial na investigação sobre o cancro está a melhorar a nossa capacidade de analisar grandes quantidades de dados genéticos e clínicos, o que conduz a previsões mais precisas das respostas ao tratamento e a melhores resultados para os doentes.

Embora tenhamos feito progressos substanciais, ainda há muito a aprender. A investigação e os ensaios clínicos em curso continuam a expandir a nossa compreensão e as nossas capacidades em matéria de medicina de precisão, o que nos aproxima de um futuro em que o tratamento do cancro é altamente personalizado e ainda mais eficaz.

No entanto, os medicamentos personalizados (nomeadamente a imunoterapia) são muito caros. Em Portugal, a despesa com medicamentos como o pembrolizumab disparou. Como é que os tratamentos inovadores podem ser compatíveis com a sustentabilidade dos sistemas de saúde?

O elevado custo dos medicamentos personalizados e das imunoterapias é um desafio significativo tanto para os sistemas de saúde a nível mundial como para os doentes e as suas famílias. Para resolver este problema, podem ser implementadas várias estratégias. Em primeiro lugar, o investimento contínuo em investigação e desenvolvimento pode conduzir a processos de produção mais eficientes e reduzir os custos ao longo do tempo. Além disso, a promoção da concorrência na indústria farmacêutica pode fazer baixar os preços.

Os sistemas de saúde também podem explorar modelos de preços baseados no valor, em que o custo de um tratamento está associado à sua eficácia e aos resultados que proporciona. Ao concentrarem-se nos tratamentos que proporcionam os benefícios mais significativos, os recursos podem ser afetados de forma mais eficiente.

As medidas preventivas e a deteção precoce também podem reduzir o peso global do cancro, diminuindo potencialmente a procura de tratamentos avançados dispendiosos. Ao promoverem estilos de vida saudáveis e melhorarem os programas de rastreio, os sistemas de saúde podem gerir os custos e, ao mesmo tempo, prestar cuidados de elevada qualidade aos doentes. Até metade de todos os cancros podem ser prevenidos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Estamos cada vez mais perto de uma cura para o cancro? Ou esse dia ainda está longe?

Estamos a fazer progressos notáveis na luta contra o cancro e, embora continue a ser difícil encontrar uma cura universal, estamos cada vez mais perto de transformar muitos cancros em doenças controláveis e mesmo curáveis. Os avanços na nossa compreensão da biologia do cancro, juntamente com as inovações no tratamento, como as terapias dirigidas, a imunoterapia e a medicina de precisão, estão a melhorar significativamente os resultados dos doentes.

Nalguns casos, os cancros que outrora eram considerados incuráveis estão agora a ser geridos eficazmente ou mesmo curados, sobretudo com a deteção e o tratamento precoces. Um excelente exemplo é o melanoma, um cancro da pele que era uniformemente letal quando se espalhava pelo corpo. Nos últimos 15 anos, os avanços na imunoterapia resultam atualmente na erradicação da doença na maioria dos doentes.

No entanto, o cancro é uma doença complexa e heterogénea, e a obtenção de curas para todos os cancros e todos os casos exigirá um investimento contínuo na investigação e na colaboração entre a comunidade científica. Os progressos que fizemos até agora dão-nos esperança e mostram a importância de esforços sustentados na investigação do cancro, nos cuidados aos doentes e nas iniciativas de saúde pública. Embora a viagem esteja em curso, cada descoberta e avanço aproxima-nos mais um passo do objetivo final de erradicar esta doença e fazer com que o cancro passe à história.

Texto: Tiago Caeiro in Observador.

 
https://www.ovarnews.pt/uma-em-cada-duas-pessoas-podera-ter-cancro-mas-muitos-dos-letais-estao-a-tornar-se-controlaveis-entrevista-do-observador-ao-investigador-ron-depinho/

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