quinta-feira, novembro 18, 2010

JOSÉ SANTA CAMARÃO - Um coração maior do que o corpo

Pugilista vareiro entre os «100 maiores dos 100 Anos da República

Ali na Poça, na casa onde hoje está o Café Stop, existiu um estabelecimento de ensino. Era a Escola de S. Francisco. Foi fundada pelo Padre Francisco Pedroso Lopes Vinga, e era custeada pela Associação de S. Francisco de Sales. Era gratuita, e oferecia os livros às crianças pobres, a quem, pelo Natal, dava ainda um fatinho novo. Como não havia a Escola de S. Miguel, frequentavam-na muitas crianças daquelas redondezas. Eu própria lá andei de 1907 até 1911, ano em que foi fechada, por ordem dos Republicanos.
Ao morrer, em 1909, o Padre Vinga deixava a escola bem estruturada. Lembro-me de que a mestra que ensinava as primeiras letras, bem como a doutrina, era a senhora Rosa Tanoeira. As outras disciplinas eram dadas pelo Sr. P.e Torres e por um outro professor de fora, o Sr. Freire.
A senhora Margarida Luzes, conhecida por Nabiça, ensinava costura e a fazer croché, meias e mantas. Era ela que olhava pela limpeza da escola, e que guardava a chave, trabalhos inerentes ao seu cargo da Associação de S. Francisco.
A República, implantada, como é sabido, em 5 de Outubro de 1910, no seu ataque às instituições religiosas, proibiu os estabelecimentos de ensino confessionais. A escola de S. Francisco foi fechada em 1911, sendo arrolados todos os seus mobiliários e bens, que ficaram lacrados durante mais de um ano.
Ainda guardo na memória alguns casos pitorescos passados comigo nesse tempo. Um dia, quando eu saía da escola, um rapazito muito espertalhão, o Joaquim Caleira, filho único, que morava na Rua Nova, meteu-se comigo sem motivo algum e empurrou-me, começando a cantar uma cantiga que me fez chorar e que nunca mais esqueci:

“Nas escadas de S. Pedro
que S. Francisco cobiça,
no lugar de cada cedro
planta-se lá uma nabiça”.

Como eu conhecia a razão daquela cantiga, chorei de verdade. Quem veio em meu auxilio, quem veio por mim, impondo-se ao rapaz, foram os Santas, que também andavam na escola, e que eram meus colegas: o Manuel, o António e o Artur. O Manuel Santa de tal modo deitou mão ao rapazito, que o fez girar, amedrontado.

A FAMÍLIA SANTA

Acontece que os três rapazes eram os irmãos mais velhos de José Soares Santa (Camarão), que foi campeão de boxe em Portugal, e que nasceu a 25/12/1902 ali, na Rua Visconde de Ovar, onde a rua atravessa o largo da Poça. Sua mãe, Josefa Santa, cozia pão para fora, e, em outros períodos, também fabricava roscas. Era casada com José Santa Camarão, que trabalhava em Lisboa nas fragatas. Bem conceituado pela sua seriedade, e bem adestrado no seu serviço, foi fragateiro toda a vida. Logo que os seus filhos, aos treze ou catorze anos, faziam o segundo grau, levava-os para Lisboa para trabalharem nas fragatas.
José, o mais novo, o futuro boxeur, já ao nascer era excepcional. Segundo dizem, veio ao mundo com um tamanho invulgar, de tal modo que todos os vizinhos fizeram romaria para o verem. Criado sem doenças, foi, bem novo, posto na escola de S. Francisco, ali a dois passos de sua casa, vigiado e amparado pelos irmãos. Tive-o como colega. Era um companheiro bom e amigo. Um pouco tímido e bastante sossegado, não gostava muito de estudar. Apesar do seu tamanho, preferia as brincadeiras infantis. Naquele tempo era vulgar fazerem-se papagaios, ou estrelas de papel, com um rabicho de trapos e um cajão de brim. Durante horas, 4 ou 6 crianças entretinham-se santamente a manipular e a colar pedaços de papel fino, cor-de-rosa. Era a brincadeira preferida do José.
Muitas vezes o vi, rapaz dos seus onze anos, a ajudar a sua mãe, Ti Josefa Santa. Um dia em que fui levar-lhe a farinha para nos cozer uma broa, lá estava o Zé a amassar numa e noutra maceira.
Desmesuradamente alto, de mangas curtas e com um lenço que a mãe, por motivos higiénicos, lhe atara à cabeça, o bondoso Zé estava excêntrico de verdade! Quem havia de dizer perante aquela figura de menino estranho, que estava ali um futuro campeão que ergueria bem alto o nome de Ovar e que entusiasmaria as multidões com os seus murros colossais. (Conta-se que um adversário viria a sucumbir após um dos seus combates).
Com os meus oitenta e tanto anos, não me sai da memória o José Santa Camarão, um homem que seria tão falado, tão desejado, tão admirado, ali ao pé de sua mãe a ajudá-la carinhosamente, mostrando que tinha um bom coração e que aprendera bem as lições da Escola de S. Francisco de Sales.
Devido ao seu tamanho e força, o pai levou-o bem cedo para Lisboa, a substituir um irmão que se tinha “pisgado” para o Brasil. Feito fragateiro por obrigação na idade de crescer, dia a dia se tornava mais corpulento e grandalhão, características que o impunham na faina do mar, tornando-se, agora, fragateiro por gosto, familiarizado na vida das embarcações e respeitado pelos patrões e companheiros.Verdadeiro S. Cristóvão tinha, na verdade, uma alma de criança. Era um bom.Certo dia, a sua vida mudou. Foi quando, faltando por doença, no Coliseu dos Recreios, um lutador de boxe, o empresário Manuel Grilo o preparou para combater. Foi o início de uma carreira fulgurante. Alexandre Cal, do Porto, convenceu-o a deixar definitivamente as fragatas. Era o ano de 1921.
A fama que granjeou nos anos imediatos, como Campeão de Portugal, fê-lo partir para o Brasil em 1926, onde fez fortuna. Ao regressar a Portugal, trouxe um treinador exclusivo, de nome Sebastião. Porque vivia com os pais, em Ovar, arrendou uma outra casa para se treinar.
Um contrato para os Estados Unidos reteve-o durante bastantes anos em terras americanas, onde casou e onde não foi feliz na carreira de lutador, devido ao pouco escrúpulo dos seus managers. De novo no Brasil, ali realizou, em 1934, o último combate oficial, que perdeu. Desiludido, regressou a Ovar. A própria mulher, por não se ambientar com os ares vareiros, preferiu voltar à sua pátria. O filho do casal, de nome Arnaldo José, por cá ficou a criar-se, seguindo, mais tarde, para a América, numa das vezes em que a mãe se deslocou a Portugal.

CAMPEÃO DE PORTUGAL

Em 1925, Santa Camarão era Campeão de Portugal em todas as categorias. Dos 19 combates em que participou, ganhou 17, perdeu 1 (por pontos), com Humbeeck, no Porto, e viu outro anulado, em Lisboa, com Barrick.
Contratado, em 1926, para o Brasil, onde esteve 3 anos, quase sempre vitorioso, regressou a Portugal em 1929, vencendo então Humbeeck (ao 6.º assalto, por K.O.) e Barrick (ao 2.º assalto, por K.O.).Em 5 anos, o seu palmarés era impressionante: Em 38 combates, 31 vitórias, 5 derrotas (por pontos) e 2 nulos.Horácio da Velha, outro campeão nacional, afirmou que José Santa tinha um coração maior que o próprio corpo.
Pelos anos 30, o cinema imortalizou-o em luta com os campeões do mundo Max Baer e Primo Carnera, no célebre filme “Amor e Boxe”, sobre a vida do primeiro daqueles gigantes dos ringues.
Diz-se que num combate em simultâneo, realizado no Furadouro, Santa Camarão destroçou, em cinco minutos apenas, e perante o gáudio dos seus conterrâneos, que o acicatavam, os lutadores portuenses David Martins (King Kong) e Aníbal Abreu.
Ovar aguarda a melhor hora para a homenagem que lhe é devida. Talvez 1984, meio século após o abandono definitivo dos ringues…

Cada vez mais só, o José Santa abriu, em sua casa, um café, que pouco tempo durou. A sua presença em alguns corsos do Carnaval de Ovar, ao lado do seu amigo João Gomes Costa, constituía sempre motivo de admiração e graça.
Em 5 de Abril de 1968 foi o seu último e definitivo combate. Agora com a morte. Perdida a peleja, foi a sepultar no cemitério de Ovar, onde jaz quase esquecido dos seus conterrâneos.

Texto de Maria José Vinga publicado no quinzenário ovarense
JOÃO SEMANA (15 de Agosto de 1982)

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