terça-feira, agosto 19, 2008

A Caldeirada "à Pinovai"

TEXTO: José Maria Fernandes da Graça

Não sabemos precisar a data em que observámos o episódio, um tanto insólito, que iremos descrever. Mas foi, com certeza, numa época balnear de há muitos anos.
Subíamos a Rua dos Bombeiros Voluntários do Porto (Avenida Central), no Furadouro, em direcção à Avenida Infante D. Henrique (marginal), quando deparámos, com bastante surpresa, com um elevado número de motos estacionadas em frente ao estabelecimento de Manuel Pinovai, que foi uma legenda viva da gastronomia vareira. Tratava-se de motos da Polícia de Viação e Trânsito. O aspecto era, de facto, invulgar, levando os transeuntes, muitos, a interrogarem-se sobre o que significaria todo aquele aparato, não atinando na verdadeira razão do acontecimento.
De que se tratava, afinal?
Nem mais nem menos do que isto: a pretexto de qualquer motivo de interesse comum, os agentes da P. V. T. tinham escolhido o estabelecimento de Manuel Pinovai para confraternizarem.
Depois de esclarecida a causa, já não estranhámos que os simpáticos agentes de trânsito tivessem optado por se deslocarem ao Furadouro para saborearem a famosa caldeirada de enguias em que Manuel Pinovai era mestre.
Podemos acrescentar, a propósito, por nos ter sido dito pelo próprio, que a sua casa era muito procurada, nomeadamente por empresários de várias regiões, com destaque para os de Vale do Ave, que em ambiente calmo diante das travessas odorosas da conhecidíssima Caldeirada, efectuavam não poucas vezes, negócios entre si. Entre a sua numerosa clientela figuravam também algumas figuras públicas nacionais, como ministros, secretários de estado, artistas, etc., etc.



Em determinada altura, cansado por muitos anos do árduo trabalho, resolveu afixar, de modo bem visível, na porta do seu estabelecimento, um letreiro com a palavra "Passa-se". Custou a fazê-lo, mas entendia não ter outra alternativa, tanto mais que não tinha descendentes directos nem familiares interessados em continuar o negócio.
Sabem o que aconteceu depois que Manuel Pinovai afixou o letreiro? Num determinado dia, entrou-lhe pela porta dentro um jornalista do "Diário de Notícias", que, talvez porque já ali tivesse saboreado a Caldeirada à Pinovai, não se conteve que não escrevesse para o grande periódico da capital um artigo a lamentar o propósito de Manuel Pinovai em passar a casa em que se tornou um especialista na arte de bem cozinhar. No dizer do referido jornalista, a hipótese da passagem do restaurante, ou talvez mesmo o seu fecho, constituiria, para o Furadouro, uma perda de consequências muito gravosas.
Infelizmente, a Casa Pinovai foi passada, acabando mesmo no próprio dia em que o negócio foi fechado.
Manuel Pinovai ainda viveu uns anos, poucos, fazendo o que durante algumas décadas não esteve ao seu alcance: passear de bicicleta e percorrer quilómetros e quilómetros do nosso país, despreocupadamente, sentindo-se como um pássaro fora da gaiola, livre como o vento.
Conhecíamo-lo desde menino, Manuel Pinovai Ramalhadeiro para uns, Manuel Pinovai para quase toda a gente, nascido na Rua Fernandes Tomás, nos Campos, em Ovar.
Em Lisboa, para onde foi muito novo, exerceu a actividade de fragateiro, profissão que, certamente, lhe revelou alguns segredos culinários, dado serem eles próprios, os fragateiros, a confeccionar as suas refeições, mormente aquelas em que se utilizava o peixe. Foi graças a essa importante experiência que Manuel Pinovai se veio a tornar um nome muito conhecido das pessoas que apreciam os bons pitéus.
E vem a «talhe de foice» dizer que a apreciadíssima "Caldeirada à fragateiro" foi produto da nossa gente que, durante anos e anos participou, em número muito elevado, em actividades relacionadas com o Tejo. Uma grande parte dessas pessoas tinha a sua "Casa" na própria fragata.
Voltando ao assunto Manuel Pinovai, foi pena não se ter registado, em pormenor, a confecção da "Caldeirada à Pinovai". Hoje isso seria facílimo, utilizando uma câmara de vídeo. Ter-se-ia dado uma oportunidade aos nossos profissionais da restauração para enriquecerem os seus conhecimentos e, com isso, poderem obter benefícios graças à prática do grande mestre durante tantos anos.
Por seu turno, Ovar, neste caso a Câmara Municipal, ficaria com o registo filmado desta especialidade gastronómica, e o nosso património mais valorizado económica e turisticamente (...).

Artigo publicado no quinzenário ovarense JOÃO SEMANA (1 de Fevereiro de 2001)

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