segunda-feira, junho 26, 2023

O coração de madrepérola do espólio do Museu de História da Medicina Maximiano Lemos está de novo em Ovar e integra a exposição que assinala os "160 anos da chegada de Júlio Dinis a Ovar".

“Com subtil arte de amor venceste o meu coração”. Esta é a pequena dedicatória que se pode ler numa das peças que integram o espólio do Museu de História da Medicina Maximiano Lemos da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), e que está exposta no Museu Júlio Dinis, no âmbito de uma exposição dedicada a um dos autores mais notáveis da literatura portuguesa.

Segundo António França, responsável pelo Museu Júlio Dinis, “parte-se do princípio que Júlio Dinis ofereceu esta peça a Ana Simões, filha de Tomé Simões, com quem terá também trocado alguma correspondência”.

Embora de pequenas dimensões, este coração de madrepérola, que remonta ao século XIX, tem um valor simbólico quase incalculável, ou não tivesse sido oferecido por Joaquim Guilherme Gomes Coelho, mais conhecido pelo pseudónimo Júlio Dinis, a Ana Simões, a Margarida d’ «As Pupilas do Senhor Reitor».

A história é esta: Já de idade avançada, Ana Simões, pressentindo a morte, pediu à filha, Maria Emília, para ir ao fundo de um baú retirar o lenço que embrulhava uma série de cartas, onde também se encontrava o coração e um retrato de Júlio Dinis, e ordenou que queimasse a correspondência, o que ela fez. “É claro que, a partir daí, a história ganhou contornos de um alegado romance, tornando-se quase um mito urbano”, refere António França.

O lenço acabou por ser doado ao Museu Júlio Dinis, no ano de 1996, por Cascais de Pinho, a quem a filha de Ana Simões o oferecera como prova de gratidão pela defesa da obra do escritor.

Em 1996, Cascais de Pinho entendeu doar o lenço ao museu aquando da sua inauguração. Já esteve exposto mas agora está guardado, “em repouso, por motivos de gestão de exposição”, explica o responsável.

“Independentemente de se saber que pertencia à pessoa em questão, é certo que havia troca de correspondência entre eles, mas não temos provas físicas disso”, lembra o responsável. Ficou o mistério e a imaginação popular para trazer a história até aos dias de hoje.

À partida, continua França, “ela terá feito um lenço de namorados e terá dedicado uma quadra a Joaquim Guilherme Gomes Coelho”. E há uma particularidade muito interessante, como sublinha: “O facto de o coração ter sobrevivido até à data, é sinal da importância de Júlio Dinis”.

A escolha da escola portuense, onde Júlio Dinis foi aluno e professor, que ainda não tinha uma vertente museológica, também, tem uma explicação. Nessa altura, continua França, “devido ao sucesso do escritor, um conjunto de mulheres reuniu-se para organizar um peditório para promover a construção de uma maternidade”. Para o efeito, “começam a publicar, nos jornais da época, as ofertas das mulheres para a obra”. Em tempo recorde, conseguem angariar o dinheiro suficiente para construir a maternidade. Consagrou-se, assim, a importância de Júlio Dinis como homem que defendeu a mulher do seu tempo, uma posição que passava pela leitura da sua obra, tendo inclusivamente o seu nome sido atribuído à maternidade.

António França conta que “quando recebe a peça, a escola trata-a como se de uma relíquia de um santo se tratasse. Neste caso, o “santo” Júlio Dinis”.

Não é, pois, por acaso que o coração é sempre figura de destaque das comemorações ou evocações em torno do nascimento ou morte de Júlio Dinis. “Em todas as grandes exposições que foram organizadas pela Câmara Municipal do Porto ou pela escola/universidade portuense, o coração de madrepérola é sempre posto em destaque, porque é o valor máximo desta relação de Júlio Dinis com a mulher”.

Órfão de mãe ainda em criança, na tia de Ovar, Joaquim Guilherme Gomes Coelho encontraria a figura maternal que sempre lhe faltara, em cuja casa se instalou em 1863 para se tratar da doença que o consumia.

O coração está aqui em depósito temporário até 26 de Agosto e a partir daí regressa ao Porto até ao dia em que possa voltar novamente.

Alias, a importância da peça é atestada no contexto da figura do escritor quando surge representada em algumas edições das “Pupilas do Senhor Reitor”, datadas dos anos 30 e 40 do Século XX, tal é a sua preponderância iconográfica, frisa António França.

Na intimidade

De resto, a questão íntima que a peça levanta é ainda pouco explorada na vida de Júlio Dinis. O responsável pelo museu ovarense diz que “esta exposição também pretendeu fazer alguma luz sobre essa vertente da sua vida”. Sabe-se que, aos 31 anos, ele não era casado. António França comenta que, “hoje isso é comum, mas naquela altura não era”. “Não há nenhuma carta de amor escrita que se conheça. Não se lhe conhece nenhuma namorada, existe este coração, a notícia da correspondência que o fogo destruiu, mas como ninguém a leu, o resto é a livre interpretação de cada um”, avisa.

Independentemente da componente técnica e do material de que é feito, o pendente em forma de coração rendilhado, hoje pouco vulgar, mas na altura bastante comum, tem outras leituras. António França acrescenta-lhe valor: “O que está aqui em causa é o simbolismo de uma peça. Isto é, se quisermos representar Júlio Dinis numa peça e a sua importância para o universo feminino do Século XIX, era nela que estaria todo concentrado, independentemente de ela ter sido oferecida a uma mulher de Ovar, por quem poderia estar enamorado”.

António França fala do escritor com dedicação: “Se Júlio Dinis nunca tivesse passado por Ovar, esta peça nunca teria conseguido alcançar o valor que tem”. Mais: Há uma personagem nas Pupilas do Senhor Reitor, Margarida, que será inspirada na figura e no relacionamento que manteve com Ana Simões e que, assegura, “também poderia nunca ter surgido se ele não tivesse ficado cá”.

Portanto, o facto da casa onde viveu ter conseguido “sobreviver” é igualmente de enaltecer. Nos anos 80 do século passado, mais precisamente em 1984, o imóvel esteve ameaçado de demolição, recorda, “impedida por acção de um movimento de ovarenses que o defendeu”. É que, em plena febre imobiliária, chegou a haver planos de demolição da casa para a construção de um prédio.

Na altura, “homens, como Cascais de Pinho, grande investigador ovarense da vida e obra do escritor, fizeram imensa pressão junto das entidades competentes”.

Auxiliados pela Lei do Património que tinha acabado de surgir, conseguem que esta seja uma das primeiras casas a ser classificadas de interesse público nacional. Mas antes, recorda França, “em 1926, já Egas Moniz, na obra “Júlio Dinis e a sua obra”, destaca esta casa e antes disso, Antero Figueiredo, figura da literatura, numa das suas reportagens, ao passar por aqui, após conversa com a prima de Júlio Dinis, em “Os Serões”, começou a construir toda a argumentação que permitiu que hoje, em 2016, possamos estar a viver este projecto em Ovar”.

A casa é o que é porque é típica da região e desempenhou um papel fundamental na escrita do Júlio Dinis. “Foi aqui que ele reuniu condições e estado de espírito para escrever, ele que era um homem da ciência”.

“É muito fácil ver as grandes casas de Camilo Castelo Branco ou de Eça de Queirós, abastadas, mas as mais singelas são destruídas”, observando que “esta é uma relíquia, pertencia a uma tia dele e sobreviveu porque teve muitos defensores, porque se não fossem essas pessoas, ela teria sido destruída”.

Até 26 de agosto, esta peça poderá ser vista na exposição “160 anos da chegada de Júlio Dinis a Ovar”, no museu dedicado ao escritor e romancista.
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