terça-feira, novembro 21, 2023

A arte de talhar os Moliceiros da Ria com as próprias mãos
Na Ribeira de Ovar, grande centro construtor de outros tempos, desde meados do século passado que a carpintaria naval se extinguiu.

Aqui ao lado, com a Ria também por perto, em Pardilhó, que já foi do concelho de Ovar durante ano e meio e agora é concelho de Estarreja, Felisberto Amador é um dos últimos embaixadores da arte da carpintaria naval, talhando com as próprias mãos os Moliceiros da Ria de Aveiro.

A vida de Felisberto Amador é uma narrativa construída à volta das ferramentas e utensílios usados na construção de todo o tipo de embarcações. A partir dos 14 anos de idade que não conheceu outra vida. «Aprendi esta arte com o meu primo Henrique Lavoura que tinha um estaleiro».

Felisberto molda a madeira com uma facilidade que impressiona. «Tudo o que fosse de madeira bruta era comigo», diz a rir. «Cheguei a fazer um barco moliceiro sozinho, num mês», recorda com orgulho, mas depois as alterações no ecossistema gunar tudo mudaram.

O moliço foi desaparecendo da Ria e «quase todos desistiram desta arte». Felisberto Amador chegou a fazer o luto à arte. «Em 1980, estava convencido que isto ia acabar, mas então começou a febre dos passeios turisticos nos canais de Aveiro e isto ressuscitou».

Começou por construir um mercantel para um operador turístico aveirense, e hoje está a remendar um moliceiro tem encomendas para mais.

O turismo dá-lhe muito que fazer. Quando faziam o que lhes estava destinado originalmente, os Moliceiros «andavam sempre fresquinhos, carregados com moliço e sal, para cá e para lá. Agora não, levam calor e chuva por cima, duram pouco tempo e precisam de muita manutenção».

Por estes dias, tem o estaleiro de Pardilhó ocupado com um moliceiro a precisar de arranjo no casco, mas no último ano fez um mercantel e dois moliceiros. Portanto, esta é uma fase boa, mas Felisberto aprendeu que, na Ria, nada é definitivo. «Amanhã, podem arranjar outro material mais duradouro e a arte naval volta a definhar.

Nisto, nunca se sabe», ajuíza Felisberto. Além disso, hoje é tudo muito efémero e «um moliceiro demora muito a construir», alertando que os construtores se debatem, hoje, com dificuldades para encontrar boa madeira: «Está muito difícil de arranjar madeira de pinheiro manso», num contraste preocupante com o que se passava quando começou. «Antes havia toneladas de madeira de qualidade, em Albergaria-a-Velha, para escolher mas agora já não há como havia». Ainda não vai há muito tempo, «havia pinheiros limpinhos que eram uma maravilha para fazer as imprescindíveis tabuadas dos barcos Moliceiros”. Agora Felisberto tem que se deslocar a Alcácer-do-Sal e nem aí é certo que encontre o que precisa. «É complicado», sintetiza, com ar de quem não gosta de falar no assunto.

«É preciso gostar muito»

Para se ser mestre de construção naval, hoje, tem que se «gostar muito» e estar dispoto a ultrapassar muitos obstáculos, o que desmotiva mesmo os mais inveterados, como Felisberto Amador: «Enquanto puder vou trabalhando, mas já não consigo fazer um moliceiro num mês, como fazia», apontando para o ombro esquerdo: «Parti um tendão e já não consigo fazer certos movimentos». Aos 64 anos abrandou o ritmo, mas garante: «Com 50 anos disto, continuo a aprender todos os dias».

O Centro de Interpretação da Construção Naval, que substituiu o velho barracão existente na Ribeira da Aldeia, além de espaço museulógico, prevê realizar cursos de construção naval de embarcações tradicionais e formação profissonal de carpintaria, entre outras actividades. Homenagear a arte da carpintaria naval é, também, uma forma de a preservar, incentivando os mais novos a aprender e a adquirirem estes conhecimentos, junto dos construtores navais ainda em actividade.

Felisberto não tem fé que nesses cursos se formem os sucessores de António Esteves e Arménio Almeida que, tal como Felisberto, talham artesanalmente muitas embarcações, usando o pau de pontos, onde estão gravadas as medidas das embarcações, a serra de mão, o enxó ou a gata que serve para erguer peças na embarcação. Para aprender tem que ser com eles.

Pelo contrário, elogia o trabalho de preservação e promoção que está a ser feito no concelho da Murtosa, no Estaleiro de Construção Naval Tradicional onde, com o auxílio do mestre José Rito e com as pinturas típicas de José Oliveira, se pode observar, passo a passo, como é construído este património.

O engenho e a destreza dos mestres

A construção de barcos em madeira no concelho de Estarreja remonta ao século XIX. Segundo a Estatística Industrial do Distrito de Aveiro, de 1867, Estarreja, que então abrangia a Murtosa, registou o lançamento à água de 85 barcos, entre os quais barcos grandes de pesca no mar.

O engenho e destreza dos mestres e a abundância da mão-de-obra especializada justificou a fixação em Pardilhó, em 1937, da delegação distrital dos Sindicatos dos Operários da Construção Naval. Na década de 40/50 havia, só em Pardilhó, mais de 30 carpinteiros navais no ativo. Hoje, restam três devidamente homenageados com a atribuição, em 2019, da Medalha de Mérito Municipal, o galardão máximo atribuído pelo Município de Estarreja.

Felisberto Amador e Arménio Almeida foi um deles, sobreviventes dos tempos áureos das embarcações em madeira, regulados pela arte e pelo "pau de pontos, o instrumento mágico da construção naval lagunar com cerca de 1,50 metros de comprimento que tem marcadas todas as medidas necessárias" à construção dos barcos.

 
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