domingo, outubro 24, 2004

Largo Santa Camarão

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Nasceu José Santa, no dia de Natal de 1902, em Ovar. A alcunha Camarão, que se colou ao seu nome para sempre, surgiu pela boca dos pescadores, amigos do pai, quando o rapaz chegou à capital para ajudar na faina do mar. Tinha pouco mais de 10 anos. Em Ovar, ficava a mãe e quatro irmãos agarrados ao fabrico de pão e roscas doces. Santa Camarão juntou-se ao pai nas fragatas do Tejo, a bordo da embarcação "Ana Rosa", para compor o orçamento familiar. Até que a vida deu uma volta de 180 graus. O seu nome correu mundo como um dos maiores pugilistas de todos os tempos. Esteve nos mais conceituados ringues da época, entrou em filmes, casou nos Estados Unidos e acabou por regressar à terra natal para descansar de uma curta, mas afamada, carreira de pugilista.
A Câmara de Ovar quer prestar-lhe homenagem, bem perto da casa onde viveu, no largo baptizado com o seu nome. A poucos metros da habitação de portas vermelhas, vai ser erguido um monumento que perpetuará a memória do boxeur vareiro. O projecto já está concluído, resta a adjudicação da estrutura que terá a forma geométrica, com imagens do pugilista nas várias faces. Esta será apenas mais uma forma de Ovar tirar o chapéu a um homem da terra que nunca negou as suas origens em todo o sítio onde meteu o pé, onde a sua prestação era entusiasticamente aplaudida. Santa Camarão só conheceu a sensação de KO ao 63º combate. Em nove anos de carreira, disputou 97 combates oficiais de pesos pesados, conquistando 70 vitórias, três empates e 19 derrotas, 11 das quais por pontos.
A caminho da idade adulta, o físico fora do normal - media cerca de 2,10 metros e calçava 49 -, causava-lhe algum embaraço. Foi nessa altura que um dos desportos da moda lhe despertou atenção. Deixou de jogar às cartas com os colegas pescadores e começou a deitar o olho nos espectáculos de circo e de luta, que tinham lugar no Coliseu dos Recreios. Até que decidiu experimentar a luta greco-romana. Deu logo nas vistas. Em 1924, Alexandre Cal, "manager" portuense de boxe, convenceu Santa Camarão a largar as fragatas do Tejo e a abraçar o boxe. A 3 de Abril de 1925, defrontava o francês Demoor no Palácio de Cristal, no Porto. Foi a primeira de muitas vitórias. Nesse ano, coleccionou 19 combates, 17 vitórias, um empate e uma derrota por pontos.
O seu nome ecoava já fora de Portugal e o empresário do Porto conseguiu levar Santa Camarão para o Brasil. A imprensa do outro lado do Atlântico baptizou-o de "gigante Adamastor". Mais uma série de vitórias na mão. Até que larga o seu "manager" e parte à conquista de Europa. Passou pela Alemanha, Reino Unido e França. Em 1930, em Berlim, entrava no filme "Amor no Ringue", onde era apresentado como o campeão de Portugal e caía no tapete, derrotado por Max Schmeling. Isto não passava de ficção porque na vida real as prestações brilhavam cada vez mais. Foi ainda na Alemanha que surgiu a oportunidade de um contrato para partir para os Estados Unidos da América, onde iria travar 42 combates, participar numa película de Hollywwod e tornar-se o herói das comunidades portuguesas. A fama corria. Até que na Califórnia encontra a mulher da sua vida, Mary. Casou-se e juntou dinheiro suficiente para não mais ter de lutar. Voltou ao Brasil para compensar a mulher de uma lua-de-mel adiada por compromissos desportivos. Até que regressou a Ovar em 1934. O seu último combate teve lugar na Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa, a 11 de Novembro de 1934.
Santa Camarão fechava assim uma década passada em combate e uma carreira que ficará para a História. E quis viver uma vida pacata em Ovar. A mulher partiu com o único filho do casal para os Estados Unidos, por não aguentar as saudades de casa, e o ex-boxeur levava uma vida longe de murros. Fazia a sua ginástica matinal, não perdia um jogo da Ovarense, frequentava o Cineteatro vareiro e chegou a desfilar, por diversas vezes, no Carnaval de Ovar. E hoje é bem lembrado e respeitado na terra que o viu nascer e morrer em 1968.

(texto de Sara Dias Oliveira, in «Público», de Domingo, 24 de Outubro. Ilustração de Marcos Muge)

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