O Barco de Mar – Arte de Xávega.
A arte de xávega, do árabe “xabaka”, é um aparelho de pesca de arrasto demersal que, na nossa costa é lançado pelo barco de mar. Partindo da praia, desloca-se até à distância consentida pelo aparelho e à praia regressa, iniciando-se então o arrasto propriamente dito.
A xávega é portanto uma arte envolvente de arrastar pelo fundo e alar para a praia, constando o aparelho, ou arte, de um saco prolongado por duas asas ou mangas, nos extremos das quais se amarram os cabos de alagem ou calas.
É constituído por um extenso pano de rede de malha quadrangular, interceptado ao centro por um saco do mesmo género: o espaço da intercepção corresponde à boca do saco e designa-se pelo nome de bocada: às duas fracções do pano, que se desenvolvem para cada lado desta, dá-se o nome de mangas, que, desde a junção à bocada, decrescem em largura até à extremidade oposta, que tem o nome de calão, ponta da manga onde se prendem as calas. que são os cabos de alagem deste sistema de aparelho de pesca.
Esta é a descrição da arte, como nos é dada pelo etnógrafo Domingos José de Castro, na sua obra "AVEIRO – Pescadores", editada pelo Instituto para a Alta Cultura em 1943.
Por essa altura, o saco, de forma trapezoidal, andava pelos 70 metros de circunferência, 40 de profundidade e 8 de largura, na cuada ou fundo do saco. A malhagem era somente de 1 cm na cuada, até atingir 6,5 cm na bocada, que era guarnecida na sua parte superior por uma cortiçada – flutuadores de cortiça – e, na sua parte inferior era lastrada por tijolos.
Cada uma das mangas tinha 230 metros de comprimento, começando por uma largura de 25 metros na parte do saco e decrescendo até 20 metros no calão. As mangas eram constituídas por panos de fio singelo de malha, que só era dobrado junto à bocada.
Ao longo das mangas, pela parte de cima e por um e outro lados, corriam paralelamente duas linhas a uma distância de 35 cm e guarnecidas com pandas, bocados de cortiça que suspendiam o aparelho a uma altura de água que nunca deveria exceder a da bocada. Pelo lado de baixo, mais duas linhas guarnecidas de discos de barro cozido – pandulhos ou bolos – lastravam as mangas, de forma a que o aparelho arrastasse mesmo pelo fundo. Nas extremidades de cada uma das mangas, eram presos por uma corda barris estanques, chamados balizas ou arinques. Um outro barril – o clime – era colocado na cuada do saco.
O aparelho era feito, nesses tempos, de fio de linho, que era depois posto numa infusão de casca de salgueiro, ficando com uma cor acastanhada, para não assustar o peixe. As mangas, para além do encasque, eram passadas por um banho de alcatrão.
As calas de alar o aparelho podiam ser de linho ou de esparto e eram divididas em rolos, partes que se emendavam umas nas outras. Estes rolos chamavam-se cordas, quando eram singelos; cabos, quando eram dobrados; e olras, quando eram triplos.
O número de rolos, que constituíam as calas, variava de praia para praia, podendo ir de 160 rolos de 60 metros cada, até 29 rolos de 99 metros cada. Isto define que os barcos de mar se poderiam afastar da praia, de 2.800 até 9.600 metros, para lançar o aparelho de pesca.
As calas eram transportadas do palheiro da praia até ao barco, rolo a rolo por vários grupos de 2 homens munidos de um bordão colocado ao ombro. A rede era levada em procissão pelos tripulantes, colocando-se no barco primeiro a manga inicial, depois o saco seguido da segunda manga; por fim colocava-se a bordo o reçoeiro – isto é: a cala de recolha da arte para terra. Esta é uma descrição sumária dos elementos físicos que constituíam o aparelho da xávega propriamente dito.
Hoje em dia, as artes de xávega, em esquema, são muito semelhantes às dos tempos recuados, diferindo somente nas suas dimensões e nos materiais de que são feitos os aparelhos ou redes. Ao linho sucederam os nylons, os polipropilenos e os polietilenos.
Com efeito, as maiores redes de xávega da nossa costa vão agora somente até cerca de 200 metros. Mas há xávegas mais pequenas que não ultrapassam os 100 metros, se bem que todas mantenham a mesma estrutura básica de outros tempos, quando a arte propriamente dita chegava a ultrapassar os 300 metros.
Em 1993 ainda não havia enquadramento legal da arte de xávega que estava em uso. Nesse mesmo ano, surgiu um projecto de portaria com esse objectivo, da autoria do ex-deputado pelo Distrito de Aveiro, Dr. Olinto Ravara, congeminado a partir da realidade então verificável na arte e de pareceres científicos emitidos pelo Instituto Português de Investigação Marítima. Tal projecto procurava definir as características e dimensões do aparelho ou arte de xávega, de acordo com um mínimo de exigências que já se impunham.
Assim, teríamos que o saco não poderia ter um comprimento superior a 50 m; que a sua largura máxima na boca não poderia exceder os 20 m e na cuada 10 m. A malhagem do saco deveria ter o tamanho mínimo de 20 mm. As mangas ou asas da arte não poderiam exceder o comprimento de 300 m; e a sua largura máxima, nos miúdos, seria de 80 m e, nos claros, 40 m. Os cabos de alagem da arte deveriam ter o comprimento máximo de 3 000 m.
As artes que se usavam efectivamente, nesses não recuados tempos, atraiçoariam porém estas bitolas, particularmente no concernente à malhagem do saco. O que pauta, hoje em dia, a arte de xávega é o Regulamento da Pesca por Arte Envolvente-Arrastante, constante da Portaria n.º 1102-F/2000 de 22 de Novembro, a qual expressamente revogou a Portaria n.º 488/96, de 13 de Setembro.
Conforme aquela Portaria, por “pesca por arte envolvente-arrastante entende-se qualquer método de pesca que utiliza estruturas de rede, com frequência dotadas de bolsa central e grandes “asas” laterais que arrastam e, prévia ou simultaneamente, envolvem ou cercam». Ainda de acordo com a mesma Portaria, esta pesca só pode ser exercida com a chamada arte de xávega, a qual é uma arte de alar para terra. O esforço de tracção necessário à alagem da arte pode ter origem mecânica ou animal, incluindo-se nesta a força braçal humana. A xávega só pode ser largada por embarcações licenciadas para o efeito e estas só podem operar na área da jurisdição da capitania de porto do seu registo”.
Julgamos que já se descreveu de forma bastante pormenorizada este aparelho de pesca, o qual se distingue de outros tipos de artes envolventes arrastantes, como a bujiganga, o chinchorro, etc., pelo facto de a xávega ser de maiores dimensões e apresentar malhagens diferentes nas mangas e no saco, malhagens essas que nas asas, aumentam da boca do saco para as extremidades, onde prendem os cabos de alagem e no saco aumentam do fundo para a boca.
O Barco de Mar ou Xávega
Fácil se torna entender que a arte de pesca empreste o seu nome ao barco com que ela se exercita. Com efeito, assim acontece no caso do barco de mar, que é utilizado na xávega na nossa costa ocidental atlântica desde Espinho até Vieira de Leiria, ao qual os pescadores também chamam tão simplesmente de “o xávega”.
Difícil se me torna, todavia, chamar ao nosso barco de mar de saveiro, como vejo acontecer, por exemplo, no DICIONÁRIO DA LINGUAGEM DE MARINHA ANTIGA E ACTUAL, obra rigorosa do comandante Humberto Leitão e que constitui o mais completo elucidário da especialidade existente em Portugal. Com efeito, nele se define saveiro como embarcação de fundo chato, com as formas semelhantes às do meia-lua, havendo por diferença principal ter a proa mais erguida que a popa.
Os saveiros /.../ não se afastam da costa e servem, especialmente, para conduzir as redes, que são lançadas em frente da praia.
Saveiro também chama ao barco de mar o arqueólogo Octávio Lixa Filgueiras, no seu trabalho THE XAVEGA BOAT – A Case Study in the integration of Archaeological and Ethnological Data, apresentado, em Setembro de 1976, num simpósio levado a cabo no Museu Marítimo Nacional, em Greenwich-Inglaterra, subordinado ao terra genérico de, traduzo, Origens e Técnicas na Arqueologia de Barcos.
Mas saveiro será já tão somente, a nossa bateira de mar, bem distinta do barco de mar na sua forma, se bem que não totalmente na sua função e uso aos olhos dos especialistas, Dr. Manuel de Castelo Branco (EMBARCAÇÕES E ARTES DE PESCA, Lxª, 1981) e Domingos José de Castro, na obra que já citámos no início.
Este etnógrafo define o barco de mar como "aparentemente desprovido de solidez /.../, de bicas exageradamente alteadas /.../, mas que, na realidade, possui um jogo de características especiais que parece explicar as condições que o apropriam à função marítima que lhe é atribuída.
Precisamente porque tem de oferecer às ondas a menor resistência para as galgar de pronto, mal assente na água, como o descreve Raul Brandão, este barco conjuga o seu formato, semelhante a um crescente, com o sistema planiforme de fundo, condições estas que lhe permitem, pela falta de portos de abrigo, o acesso directamente do areal para o mar e vice-versa, e suportar com mais facilidade, pela elevação pronunciada dos castelos da proa e da ré, a violência da pancada do mar, ou quebra das ondas, na manobra arriscada da travessia da faixa de rebentação geralmente forte no litoral de areia que se delimita a Norte, nas primeiras rochas de Miramar e a Sul ultrapassando o Cabo Mondego, nas areias da praia de Vieira de Leiria. Raul Brandão compara-o com "o feitio côncavo do espaço que vai de vaga a vaga" – o seio da vaga, acrescentamos nós.
O barco grande de xávega é ainda hoje, como sempre foi, construído de madeira de pinheiro e tinha nas construções em uso nos meados deste século, 16,5 m de fora a fora, 4,2 m de boca, 3,5 m de largura máxima de fundo entre costados e um pontal de 1,3 m. Deslocava cerca de 15,5 toneladas, calava cerca de 1 metro e tinha um esqueleto de 27 cavernas. O período de vida útil dum barco deste tipo era de cerca de 8 anos, desde que submetido a regulares tarefas de manutenção.
Desde os seus alvores, foi sempre um barco a remos, com grupos de 2 ou de 4 remos. No primeiro caso, os remos chamam-se: o de vante, remo-maião; o outro, remo-proa. Nos barcos de 4 remos, estes chamavam-se, de proa para a ré: remo-castelo-da-proa, remo-maião, remo-proa e remo-castelo-da-ré.
No caso dos barcos de dois remos, a tripulação era de 34 homens e nos de 4 remos, 46 homens. Actualmente a grande maioria, se não a totalidade dos barcos de mar, só tem 2 remos, usados nas manobras de largada e de chegada à praia. São mais pequenos de porte e a sua propulsão, no lance da arte é garantida por motores fora-de-borda da ordem dos 40 cavalos, enxertados na rabada dos barcos.
Quanto à origem destes barcos únicos na nossa costa, muito há que esclarecer.
Rocha Madahil, no seu trabalho “BARCOS DE PORTUGAL”, escreveu: "Na Costa baixa entre Espinho e Mira fixou-se há muitos séculos outro tipo de barco de pesca, graciosíssimo, perfilado em crescente de lua, que mal aflora a vaga e vai a grandes distâncias, sem leme sequer, levado sempre pelos possantes remadores, que o empregam principalmente na pesca da sardinha. Por comparação da sua silhueta com o petróglifo de Häggeby, conseguimos determinar-lhe a ascendência normanda, dos Vikings, que utilizavam barcos assim para viagens de longo curso; do conhecimento da nossa costa por esses povos do Báltico não é lícito duvidar: documentos portugueses do século XI referem algumas das piratarias desses Laudomanes, e aprisionamento de populações das vizinhanças de Ovar, resgatadas, depois, por cabeças de gado, artefactos e moios de sal. Cerca de dois séculos duraram essas piratarias dos normandos nas costas da Península, e nos nossos barcos do litoral vareiro ficou até ao presente a imagem viva dos seus transportes marítimos, que fizeram o terror dos nossos antepassados, mas que ofereciam notáveis condições de navegabilidade, ainda hoje não excedidas para as fainas da pesca local. Esse mesmo tipo de barco, que supera em elegância qualquer outro da costa portuguesa, encontra-se em Lavos, ao sul do Mondego e na Caparica, onde o conhecem por saveiro ou meia-lua; ao norte, irradiou também para a Afurada e Lavadores. Poucos mais anos durará."
Como se enganou Rocha Madahil neste vaticínio, como muito bem se prova com o renascer actual da arte de xávega, por razões que adiante aflorarei.
Rocha Madahil não se terá enganado, somente, neste seu antever das coisas futuras. É que as origens normandas, que ele procurou justificar, são totalmente contrariadas pelo arqueólogo naval Lixa Filgueiras, no trabalho que já atrás mencionei. Com efeito, este Professor Arquitecto tão dado às coisas da arqueologia, à luz de conhecimentos muito mais recentes e profundos, divide o nosso país em duas zonas. E o que o divide é o Douro, afirmando que a Norte deste se verificam influências primevas escandinavo/germânicas nas embarcações de rio e bretãs, nas embarcações da costa. Como exemplo acabado das primeiras, aponta o rabelo do Douro: e das segundas, a lancha da Póvoa, que aquele cientista compara, de forma evidente, com o sinagot bretão.
Para sul do Douro, e em toda a nossa costa, Lixa Filgueiras afirma que o saveiro, para ele o nosso barco de mar, é o tipo de barco mais significativo e o vector principal da mais antiga influência mediterrânica. Referindo-se a uma origem mesopotâmica, ele realça a identidade espantosa – técnica e formal – entre o nosso barco de mar e um barco da antiga cidade babilónica de UR (foto à esquerda), que ainda sobrevive no baixo Eufrates e que, pela rota comercial até Ugarit (via Eufrates, Aleppo, Alalakh), terá chegado até ao Mediterrâneo.
Avança ainda com evidências iconográficas: selos cretenses reproduzindo barcos do mesmo tipo, pinturas da tumba de Hagia Tríada e possivelmente. os murais de Thera, que garantem a presença de barcos idênticos no mar Egeu numa progressão para ocidente devidamente documentada.
Mais procura alicerçar a sua tese, verdadeiramente enriquecedora do nosso imaginário histórico recuado, avançando com o problema da origem étnica das comunidades piscatórias, que praticam a xávega com o nosso barco de mar, fundamentando-se com as suas peculiaridades, na coincidência das áreas de distribuição destes barcos, com as principais áreas de refúgio dos povos do sul da Ibéria, depois da queda de Tartesso. Tudo isto, repondo a questão em aberto da influência cretense na desaparecida Tartesso.
Não resisto a citar, recorrendo ao texto inglês, de Lixa Filgueiras, já citado: "Acredito que será muito mais gratificante rever a teoria de Schulten quanto à origem cretense dos povoamentos pré-tartessianos do sul de Espanha, desde os primeiros passos da metalúrgica local, cerca de 2700 a.C., até à chegada cerca de 1 100 antes de Cristo, dos fenícios a Cádis, capital proposta por Schulten para Tartesso, período em que se verificaram importantes acontecimentos na zona do mar Egeu e que, por certo, se reflectiram na costa mediterrânica ibérica. Os selos cretenses com barcos de meia-lua, datados de cerca 2.200 a 2.000 a. C., coincidem com a emergência da talassocracia cretense e subsequente estabelecimento do seu comércio nas praias peninsulares. A rota do estanho e da prata funcionou e é o arqueólogo Schulten, a quem se recorre mais uma vez, que afirma que há vasos, colares e braceletes encontrados no SE da península e que são de origem cretense: assim como adagas de cobre peninsulares datadas do III milénio a. C. foram também encontradas naquela ilha de Creta. Tudo isto mercê do tráfego dos barcos de meia-lua, antepassados dos saveiros, nossos barcos-de-mar. A frota, em que assentava a talassocracia cretense, terá chegado a Tartesso, e daqui até à nossa costa, como já veremos.
Recorrendo a Fernando de Almeida (in Enciclopédia Verbo), Tartesso terá sido um lendário estado monárquico peninsular, que abrangia uma vasta área, que iria desde a actual Cartagena até à foz do Tejo e cuja capital, possivelmente do mesmo nome, se localizaria em Cádis ou Sevilha. Tartesso manteve vastos contactos com os povos do oriente mediterrânico, por força dos quais terá surgido uma escrita semi-silábica, de que são conhecidas inúmeras inscrições, encontradas no Algarve e no Alentejo.
Mercê das suas riquezas mineiras, manteve este reino contactos com fenícios, etruscos, cartagineses, gregos, celtas e romanos. Tartesso entrou em decadência e sucessores do seu último rei, Theron, terão sido os turdetanos e depois, os túrdulos. E terá sido um grupo de túrdulos que, segundo Estrabão, acompanhou um bando de "célticos", numa campanha em direcção ao norte da Península. Conforme Matoso, terão sido os Túrdulos Velhos (Turduliveteres), citados por Mela e Plínio, que ocuparam as regiões do Vouga e do Mondego, alastrando até junto do Tejo.
Entre as suas cidades, contavam-se entre outras, Aeminium (Coimbra), Conímbriga e Talábriga. A nossa Talábriga, topónimo formado por TALA + BRIGA, tendo o primeiro elemento, possivelmente, origem na lingua tartéssica e que significa "barro", "argila”; o segundo, "briga", é de origem céltica e quer dizer “monte".
Ora, Talábriga ficaria, segundo o itinerário de Antonino, a 40.000 passos de Aeminium, (Coimbra), na estrada romana que iria desta até "Cale", hoje Gaia: mais ou menos a 59 Km por norte de Coimbra, aqui mesmo, na Branca, ao lado de Albergaria, onde ainda se vêem restos de via romana. Concluindo-se, para incitar a novas buscas: a dispersão das populações do sul peninsular, depois da queda de Tartesso, pode-se comparar com as rotas de unificação dos barcos de meia-lua, os nossos barcos-de-mar, que se orientaram em primeiro lugar, para a nossa região e depois, refluíram, por razões bem diferentes e em épocas bem posteriores, para as várias praias de areia da nossa costa ocidental e do Algarve.
Homens da xávega
A história da arte de xávega é em larga medida, a história do povoamento das areias litorâneas portuguesas do Atlântico ocidental e algarvio, particularmente no grande areal da costa norte de Espinho, até Vieira de Leiria e mais para baixo, na Costa da Caparica, Santo André e Monte Gordo.
Habitando em precários palheiros construídos na praia ou até sob os seus próprios barcos ao longo dos séculos, começando muito antes até da constituição da nossa nacionalidade, há provas do uso de redes lançadas desde terra e recolhidas, também para terra, só à força de braços; com barcos e com ajuda de braços e com juntas de bois ou, como acontece hoje, com tractores.
Os discípulos de Jesus, pescadores da Galileia, praticaram esta pescaria. Assim como os fenícios, os gregos e os romanos; os árabes, os catalães, os franceses e espanhóis e os andaluzes, também.
Contudo, as redes de xávega, tais como as descrevemos, terão sido trazidas para Portugal, por catalães, tanto do lado da França como do lado de Espanha, que aperfeiçoaram a arte nas águas mediterrânicas.
Nós estamos numa terra que se pode também considerar o centro de irradiação da xávega. Possivelmente, e já agora invocando Jaime de Magalhães Lima, por causa da influência tartéssica. Por volta de 1925, Magalhães Lima, com efeito, já sugeria que os pescadores de Ílhavo, uma das mais importantes comunidades piscatórias da Ria de Aveiro, descenderiam do povo de Tartesso.
No século XI, já se amanhavam marinhas de sal na nossa Ria. Ovar, Aveiro, Ílhavo, Vagos e Mira já tinham deixado de ser povoações bordejando o Atlântico, para passarem a ser terras da Ria.
No século XII, a nossa barra estava na Torreira; e só séculos mais tarde é que a restinga de areia, crescendo do norte, a empurra até Mira. Os nossos pescadores são pescadores-camponeses e os palheiros da nossa costa só os abrigam nos períodos da safra. No século XII, há provas de que já havia pescadores de Ovar a fazer pesca de mar, assim como em Buarcos, Lavos e Mira.
À medida que a Barra avança para sul, deixa de haver marinhas de sal em Ovar; as espécies de água salgada começam a rarear na laguna e a sua pesca começa a empobrecer. Os homens de Cabanões, Ovar, no século XVI, começam a trabalhar no Furadouro, pois que era a praia mais próxima. Depois, avançam para a Torreira e São Jacinto. A capela da Nossa Senhora das Areias é anterior a 1549. Por essas alturas, usam o chinchorro, uma arte mais pequena que a xávega e cujo pescado mais significativo era a sardinha. No século XVIII, Aveiro não teria mais de 1 400 casas em ruinoso estado, e a população morria de fome e de febres.
Mas, antes, no século XVI, Aveiro, no seu apogeu, armava mais de 150 barcos para o comércio do sal e para a pesca do bacalhau e não há notícia de emigração de pescadores. Já não assim no século XVIII, século da miséria das nossas terras, com a Barra praticamente fechada. Os Ílhavos fundam, em 1770, uma colónia na Caparica. O século XIX é um período mau para a economia da Ria. A barra está má e dá-se a migração dos nossos pescadores. Formam-se mais companhas ao longo da nossa costa: na Costa Nova, na Vagueira, no Areão; os palheiros de Mira começam a ser construídos por pescadores de Ílhavo, no princípio desse século; e depois, surge a Tocha.
É um Ílhavo de nome Barreto que leva para a Cova, a sul do Mondego, em 1808, a sua companha. Um outro Ílhavo, logo de seguida, funda a companha de Lavos. E um outro, seu neto, chega à Leirosa. Na mesma levada, é gente de Lavos e de Mira que começa a trabalhar com a xávega, em Pedrógão. Em Vieira de Leiria, a xávega também surge no princípio do séc. XIX. Nos meados do século, a Costa da Caparica surge como colónia de ílhavos e de algarvios. No virar para o século XX, há lá 10 companhas com mais de 700 pessoas. Depois, é a Fonte da Telha, a Costa da Galé, a lagoa de Santo André, sempre com gente da mesma origem: Ílhavo. Quando o mar não deixa, os pescadores de Ovar e de Aveiro ficam-se por Cascais e, mais adentro no Tejo, nas águas de Vila-Franca: são os avieiros.
Mas a verdade é que, no século XIX, as capturas feitas pelas companhas de entre Espinho e Mira representam, grosso-modo, 1/6 do total das pescas de Portugal. Mais de 5.000 pessoas empregam-se em 90 companhas, que se espalham por 25 praias da nossa costa ocidental. Os barcos e as xávegas aumentam de tamanho e começam a ser utilizados bois na faina. Uma companha, que chegava a empregar 200 pessoas, entre tripulantes e pessoal de terra, com a utilização dos animais, passa para de 80 a 100 pessoas, como consequência do uso das juntas de bois.
As redes chegam a atingir os 700 metros, com lanços que chegam também a afastar-se da costa 6 Km, usando, em cada manga, cordão de alagem que atinge os 10 Km. Os barcos de mar chegam a medir, de fora-a-fora, 16 metros, e os de 4 remos levam a bordo 46 homens, aos remos e aos cambões. Até meados do século XIX, as companhas tinham uma natureza cooperativista, repartindo-se o resultado da pesca em quinhões, uma vez deduzidas as despesas.
Depois, surgem empresas dominadas pelos grandes proprietários, comerciantes e conserveiros, pois que o espírito de companha se perdeu, em consequência de abusos dos arrais, que tinham deixado de ser eleitos e começaram a aparecer como patrões. Os pescadores passam a assalariados, recebendo um salário em dinheiro – a soldada –, mais uma pequena caldeirada e algum vinho. Com o relançamento da pesca longínqua e do arrasto costeiro, em meados do século XX e primeiras décadas da sua segunda metade, as xávegas quase que desaparecem.
Mas, nas últimas dezenas de anos, com a política de abate de navios, favorecida pela Comunidade Europeia, em consequência da implantação de zonas económicas exclusivas e de uma tentativa de fazer com que se adequem as capacidades de captura aos recursos piscícolas sobre-explorados, em águas de países terceiros, está-se a assistir ao renascer da arte de xávega na nossa costa e ao recrudescer das pescarias artesanais, não só no litoral, como no interior da Ria. É que milhares de pescadores perderam, por causa destas mudanças, o seu emprego nas pescas industriais.
E aí, Rocha Madahil não acertou no seu vaticínio, que até corresponderia a um desiderato correcto. A xávega renasceu, mas nem por isso deixa de ser uma arte, como sempre foi, economicamente muito aleatória e por muitos considerada nociva para as maternidades. Por regra, o peixe capturado é de dimensões reduzidas. E os rendimentos dos pescadores são insatisfatórios, por insuficientes e não regulares. Este renascer de uma arte tão pouco segura, economicamente considerada, é sinal de doença social, que carece de diagnóstico adequado e de medidas curativas, que não passam, somente, pelo seu hipotético valimento como atracção turística.
Como actividade económica com futuro válido, por certo que não o é, pelo menos na nossa perspectiva apesar de os pescadores, no seu atavismo, poderem gritar que sim, como o têm vindo a fazer nos últimos tempos, pois não vislumbram, só por si mesmos, alternativa de vida.
E, contudo, o espectáculo está aí, nas nossas praias, na alacridade das belíssimas imagens que as objectivas gulosas, ávidas, dos turistas vão roubando ao suor de quem pratica tão ingrata arte».
Adaptado do artigo de Gaspar Albino – Prof2000.
Sem dúvida, o barco de mar é um dos exemplos da riqueza marítima de Portugal e dos vários povos que acabariam por formar o país até hoje. Normalmente ninguém pensa muito sobre isto, somos todos Portugueses, mas não deixa de ser extraordinário olhar para o passado e descobrir a origem de coisas que temos hoje como nossas e os barcos de pesca e trabalho ao longo de todo o Portugal são um dos temas que melhor retratam esse passado.
Tenho varrido país a país da Europa que tem costa e mar e os seus barcos tradicionais e isso deu-me uma imagem geral pela qual passei a medir Portugal na sua riqueza marítima. Não conheço outro país com tamanha variedade de barcos de diferentes raízes no seu passado e sendo Portugal país de passagem entre Mediterrâneo e Norte da Europa, ganhamos com isso a riqueza naval dos dois. Saibamos pois mantê-la viva fora dos museus e presente na língua do povo.
Aconselho a visita ao site MARINTIMIDADES, da Drª Ana Maria Lopes, onde é possível encontrar um excelente artigo sobre um modelo dum barco de mar já bastante antigo e restaurado recentemente pelo hábil Capitão Marques da Silva. Uma notável pequena obra-prima.
A merecer uma prolongada visita está também o site a Arte Xávega na Torreira, de onde é a foto nº 2. Contém fotos que documentam esta pesca desde há vários anos e é de grande valor etnográfico.
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