TEXTO: Albano Alferes
A maior afronta que se pode arremessar à fronte de um bom e legítimo vareiro é acusar os seus antepassados de terem enterrado o Senhor na areia, como se ouve, para aí, a cada passo, nos domínios da troça ou mesmo do insulto, como se os antigos vareiros, num movimento neo-judaico, fossem capazes de cometer tão hediondo crime, o que iria, além do mais, brigar com os pergaminhos e as gloriosas tradições cristãs do Povo Vareiro.
Deve ter, no entanto, uma origem este ultraje à memória vareira, e assim, eu, apegado ao Padre Oliveira Pinto, insigne investigador, não tenho o menor receio em afirmar que a origem em questão se topa nas invasões francesas e se prende com as mesmas.
Senão vejamos: Napoleão Bonaparte, encontrando-se no Palácio de Milão, em 3 de Dezembro de 1807, em plena invasão francesa, decreta, dali, um imposto de guerra de cem milhões de francos sobre a Nação Portuguesa “para resgate da sua propriedade particular”; Junot sabendo que Portugal não tinha possibilidades de realizar essa importância astronómica, e muito solícito em assuntos de pilhagens publicou, logo, ou seja em 1 de Fevereiro de 1808, um decreto determinando a recolha, no prazo de 15 dias, na Casa da Moeda, interpostas as recebedorias das décimas “de todo o ouro e prata das igrejas, capelas e confrarias do país, exceptuando apenas “as peças necessárias à decência do culto”.
Nesta emergência, houve algumas pessoas e entidades que esconderam muitas alfaias de culto, enterrando-as.
Consta que, na vizinha freguesia de Souto, estiveram enterrados, durante as invasões, um cálice “ricamente trabalhado” pertença da Capela de Tarei, uma píxide de estilo rococó, e uma custódia de certo valor, pertencentes à Igreja Paroquial, e ainda hoje existentes.
Ora é da tradição que os-de-Ovar enterraram bastantes dessas alfaias, entre as quais algumas cruzes paroquiais com o Cristo Crucificado e daqui teria nascido o vexame imputado aos Vareiros de terem “enterrado o Senhor na areia”.
É curioso lembrar a extensão deste “desvio”; só da freguesia de Souto foram para não mais voltar: seis tocheiros, seis varas de pálio, um turíbulo com naveta, um lampadário, uma cruz paroquial, e uma vara de juiz, tudo em prata.
Com todas estas peças de prata e ouro recolhidas, Junot carregou dois barcos que lá foram pela barra fora…
É ainda curioso e triste lembrar que muitas pratas saídas das freguesias não chegaram às “recebedorias das décimas”, ficaram pelo caminho…
Alguns de cá estavam a trabalhar em sintonia com os de lá…
Modalidades da fraqueza humana.
(in «Artigos do João Semana»)
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