Na semana da morte desta grande ovarense, respigamos um texto de Maria da Graça Muge Costa, publicado no n.º 17 da revista “Reis” (1983), numa edição da Trupe JOC/LOC
– Hoje estou muito feliz…
Vim de uma festinha que um grupo de crianças ensaiou e representou na sua simplicidade e modéstia…
Feliz, por ver florir um grupo cuja semente foi lançada por mim.
Foi com estas palavras que começou a nossa conversa com Edwiges Helena Gondim da Fonseca, mulher bem conhecida do povo vareiro pelo facto de pertencer a uma família que se notabilizou pela sua dedicação à Arte. Basta lembrar seu avô, António Dias Simões, e sua mãe D. Maria Amélia Dias Simões, ambos grandes artistas vareiros.
Edwiges é uma mulher profundamente apaixonada pela Arte em geral, mas com maior incidência na Música, que a fascina de maneira particular.
Sente que a família a influenciou, ainda que inconscientemente.
Como esteve sempre muito ligada a sua mãe, não pôde deixar de a recordar neste momento.
D. Maria Amélia Dias Simões, ilustre vareira, que permanece de tal modo viva na memória de todos nós, que jamais esqueceremos a sua grande dedicação a Ovar.
Ainda bem que fomos capazes de reconhecer todo o seu valor ainda em vida, fazendo-lhe uma festa de homenagem.
A propósito deste facto, Edwiges diz-nos:
– A festa de homenagem que fizeram a minha mãe foi uma festa muito importante, porque ela viu, apercebeu-se e sentiu quanto o povo de Ovar lhe queria. Se tivesse sido antes, não teria sido pior…
Na sua infância, sua mãe e sua tia Emilinha falavam-lhe muitas vezes de seu avô.
Foi um homem excepcionalmente inteligente, dado às artes e dotado de muitas faculdades.
Fundou um colégio para crianças, o Colégio Júlio Dinis, chegando mesmo a fazer teatro com elas.
A criança era o ponto fulcral de todas as suas ideias e objectivos. Edwiges terá herdado dele o gosto pela poesia, pela música e pelo teatro. Lembra-se de que, quando seu avô era evocado como um homem extremamente culto e inteligente, não acreditava muito nisso, pois pensava que seria exagero de sua mãe e de sua tia.
Foi só por altura da festa de homenagem, no I Centenário do seu nascimento, que teve oportunidade de reconhecer todo o seu valor, através do Sr. Arada e Costa, que a levou à descoberta do avô, dando-lhe a conhecer toda a sua obra, mostrando-lhe manuscritos das suas poesias, os seus desenhos, muitos deles guardados ainda religiosamente por algumas famílias vareiras, a quem seu avô costumava normalmente ofertar as suas obras. Como exemplo, podemos citar uma obra ofertada à Sr.ª D. Rita Estêvão Arala e ao Sr. Dr. Pedro Virgolino.
– Foi uma época da minha vida extremamente interessante e importante, em que me apaixonei verdadeiramente pela memória de meu avô. Reconheci, então, que ele era muito mais do que eu pensava!...
Uma vocação contrariada
Dos 7 aos 12 anos, Edwiges frequentou um colégio de freiras. Já aí se começaram a manifestar as suas tendências artísticas. As religiosas notavam a sua habilidade para o canto e para o teatro, incitando-a a continuar…
Aos treze anos, foi para Leiria, onde ingressou num outro colégio, pelo facto de sua mãe aí leccionar Francês e Música.
Com quinze anos, pediu a sua mãe para tirar o Curso do Conservatório.
É aqui que surge o primeiro de muitos entraves que iriam impedir a sua carreira. Esta só poderia ser concretizada muito mais tarde, pois sua mãe não tinha possibilidades de pagar o seu curso…
Como vê o seu sonho desfeito, pede para entrar para o Orfeão.
O seu pedido é aceite, embora com um pouco de relutância…
D. Amélia Dias Simões, apesar de conhecer suficientemente os dotes de sua filha para o canto, o teatro e a música, nunca lho fez notar. Foi Joaquim Calado, violoncelista, que a chamou à atenção, dizendo:
– Já reparou na voz de sua filha?
D. Amélia, muito simplesmente, dizia:
– Já…
E nada mais acrescentava a esta interjeição. Como mulher simples que era, nunca quis evidenciar a filha, nem que esta disputasse papéis nas revistas.
Possuía uma maneira muito própria de guardar o que só ela sentia.
Mais tarde, um irmão daquele amigo da família, Álvaro Calado, tocando na revista “Solar das Andorinhas”, convidou-a para cantar no grupo coral do Conservatório de Música do Porto.
Grupo excepcional, do qual Edwiges guarda ainda muitas amizades. Tinha já nessa altura 21 anos.
Foi integrada nesse grupo, que teve possibilidade de ir ao País de Gales, onde participou num festival anual, e onde conseguiram alcançar o 2.º lugar a nível mundial.
Começou aqui a ganhar formas o seu sonho, recebendo aulas de canto da ilustre D. Stella da Cunha. Apesar deste sonho ter durado pouco, Edwiges reconhece algo:
– Ao fazer uma retrospectiva, verifico que isto alicerçou o meu desejo de entrar no Conservatório.
Edwiges continuou a sua actividade, participando em vários espectáculos, acompanhada por grandes maestros como Resende Dias, Virgílio Pereira, e outros.
Um dia, Virgílio Pereira, ao ouvi-la cantar, deu-lhe um conselho:
– Faz as malas e vai para o estrangeiro, para que um dia eu possa ouvir falar de ti…
Mas mais uma vez não foi possível dar corpo ao seu grande desejo de ser actriz.
O tempo passou, até que vai para Angola.
– Sim, estive em Angola… Esqueço os maus momentos desta minha passagem por terras africanas. Mas a felicidade que aí vivi junto dos meus verdadeiros amigos, como Jaime Mendes, jamais poderei esquecê-la. Foi Jaime Mendes quem orquestrou algumas músicas que cantei na Rádio Clube de Angola.
Regressa a Portugal em 1952/53, ingressando novamente no Orfeão e participando em mais peças.
É então que surge a oportunidade de o Orfeão levar a Lisboa a revista “Aqui Ovar”, onde esta jovem actriz viveu momentos inesquecíveis.
– Jamais poderei esquecer o entusiasmo e o calor sentidos nas palavras da ilustre actriz D. Palmira Bastos que, ao ir-me abraçar ao palco, me entusiasmou a continuar a fazer teatro.
Edwiges teve, nessa altura, vários convites. Jaime Mendes, Augusto Fraga e Palmira Bastos convidaram-na a fazer Rádio, Cinema e Teatro.
Uma vez mais ficou em Ovar, onde nasceram os seus filhos.
Muito mais tarde, recorre a uma amiga, que lhe dá aulas de canto, e actua, assim, no Ateneu Comercial do Porto.
As suas actuações continuaram, chegando a ser convidada para ir ao S. Carlos, onde foi admitida de imediato.
Mas não lhe foi possível aceitar tão honroso convite.
Nessa altura, acaba por tirar o Curso Superior de Francês, e surge o emprego.
– Sabia música, sabia cantar, mas uma coisa era certa. Não tinha o Curso do Conservatório.
Até que, em 1979, já com a certeza de tornar realidade aquilo que tanto desejava, diz a sua mãe:
– Vou tirar o Curso do Conservatório!
– Tens coragem para isso?
– Vamos ver…
E foi assim que, quase avó, iniciou o seu Curso no Conservatório.
No livro da Academia ficou escrito a seu respeito:
“Exemplo a seguir, pela dedicação à música”.
É então que perguntámos:
– Sente-se vaidosa por isso?
– Não há ninguém que não seja vaidoso. O artista que não luta, que não sente vaidade da sua arte, não é artista. Pessoalmente, não sou vaidosa. Preocupo-me pouco com a minha pessoa.
Academia de Música para as crianças de Ovar
Actualmente, Edwiges, quase com o seu Curso do Conservatório concluído, está a dar aulas de música na Murtosa, mas não se sente totalmente realizada ao exercer esta actividade.
– Tenho ainda um grande desejo na vida… Morreria feliz se conseguisse que todas as crianças de Ovar pudessem aprender música; mas aprendessem mesmo…
A criança é o centro das minhas atenções. Elas têm, para mim, uma importância fundamental. Esse meu desejo é, nem mais nem menos, fundar uma Academia de Música em Ovar. Não posso aceitar que nesta terra ela ainda não exista”.
Tudo seria fácil para que este seu desejo se concretizasse, se houvesse disponibilidade e preocupação por parte de quem de direito… Mas o emprego, a família, o estudo, tudo são obstáculos difíceis de transpor.
Apesar de todas as dificuldades, Edwiges tem bastante confiança.
– Tenho confiança em Deus, e como tudo tem a sua hora própria, é possível que este meu sonho venha a ser realidade dentro de um curto espaço de tempo.
Algumas das últimas palavras de sua mãe marcaram-na, e dão-lhe força para continuar a lutar por este seu grande desejo.
– Não desistas, porque és capaz de lá chegar!...
Estas palavras continuam a ecoar nos seus ouvidos e a dar-lhe coragem para prosseguir a carreira que foi impedida, ao longo da sua vida, por obstáculos que constantemente surgiam e a ultrapassavam.
Uma esperança renasce para Edwiges, que vê sua filha quase a terminar o seu Curso de Ballet, o que a irá ajudar, sem dúvida, na concretização do seu grande sonho.
– Sempre os músicos, os pintores, os escultores, foram marginalizados, mas é deles que o Mundo fala… Sendo assim, não me importaria nada de ficar nesta lista, desde que conseguisse pôr de pé, nesta terra de Ovar, a Academia de Música e Ballet.
O meu grito de esperança e alerta aqui fica! – Fundemos uma Academia em Ovar! Amparemos os jovens, e saibamos estender a mão amiga aos que se afundam nos convites a outras formas menos próprias de ocupar o tempo!....
O espírito reiseiro
Depois deste desabafo, ao qual damos todo o nosso apoio, a nossa conversa prosseguiu com o objectivo de falarmos no tradicional Cantar dos Reis em Ovar.
Edwiges trabalha nos Reis há 30 anos. Foi o cansaço de sua mãe que a levou a entrar nestas actividades. Inicialmente, começou apenas por ajudar, mas, a certa altura, viu-se a fazer poesia para as várias trupes que sua mãe tinha a seu cargo: Orfeão, Bombeiros, JOC, Ovarense.
E foi um não mais acabar de actividades…
Actualmente Edwiges tem a seu cargo as trupes da Ovarense e Orfeão.
Sobre o cantar dos Reis, diz-nos:
– Fazer poesia para as trupes dos Reis é um pouco difícil, pois o tema é sempre o mesmo, e não se pode fugir dele. Mas, com um pouco de criatividade, sempre se consegue…
Inicialmente, a poesia era adaptada a músicas já conhecidas. Hoje vai-se muito para as músicas inéditas. Acho que é uma iniciativa valorosa, pois evidencia a capacidade criadora de cada um. No entanto, acho que peca pelos exageros…
A simplicidade neste tema “Reis” deve ser uma tónica a não perder. Importa, sobretudo, o espírito reiseiro, para que a mensagem que se leva a cada lar fique bem na mente de quem a ouve.
Quanto aos instrumentos, devem permanecer os de corda. Meu avô revolucionou um pouco as Janeiras em Ovar. Inicialmente, estes grupos não tinham instrumental. Foi ele que, ao fundar a Trupe dos Velhos, lhe introduziu os violões.
Uma trupe fica tanto mais bela quanto mais instrumentos de corda possuir.
Quanto a trupes femininas, não são uma novidade desta época. Já em tempos idos, elas existiam.
Recordo-me, ainda criança, da existência das “Noelistas”, trupe composta, na sua maioria, por senhoras. Não me recordo bem se na parte instrumental entrariam ou não homens.
Mas deixemos os homens brilhar na noite de Reis, com os seus cantares. Esse brilho que manifestam é, muitas vezes, fruto de trabalho de mulheres… Sem elas, talvez os Reis tivessem menos brilho… Recordo, mais uma vez, minha mãe, que sempre lhes deu apoio, os entusiasmou, ensaiou e até guardava segredo do que cada um cantava…
Havia uma pontinha de ciúme entre as diversas trupes que a minha mãe ensaiava, mas nunca ela manifestou maior ou menor carinho por esta ou aquela. Olhava-as a todas com a mesma ternura e a mesma vontade, para que brilhassem nessa noite divinal.
Hoje, os tempos são outros, e isso já não se justifica. Vê-se mesmo que os elementos dos diferentes grupos fazem a sua análise, sabendo dar o verdadeiro valor a quem o tem.
Quase a terminar a análise e comentário a um passado não muito longínquo, não podemos deixar de referir a visita feita, há pouco tempo, por Edwiges, à América do Norte, de onde regressou extremamente comovida, sensibilizada e feliz pela maneira como foi recebida.
A maravilhosa cidade de Elisabeth, onde residem tantos vareiros e com quem Edwiges esteve vários dias, deu-lhe luz verde para a gravação de um disco, a expensas da Filantrópica Ovarense (na foto).
Damos-lhe todo o nosso apoio e entusiasmo para esta gravação, que permitirá aos nossos vindouros reconhecerem o seu talento.
Aguardemos, pois, e apoiemos em todos os seus sonhos esta artista, que, apesar de ter a nacionalidade brasileira, é legitimamente portuguesa e vareira.
Ao longo de toda esta conversa, uma coisa concluímos com satisfação: – a dinastia Simões continuará, por certo, a reinar por muitos e muitos anos, pois já sua filha Alexandra cursa Ballet e seu filho Rogério cursa Arquitectura. Corre nas suas veias a predestinação para a Arte…
Que orgulho para todos os vareiros!...
1 comentário:
Pena que não muito tempo depois começasse o desaproveitamento do talento e vontade da Dª Edwiges, preterida a favor e outros interesses.
Uma grande senhora que será lembrada por quem dela gostava.
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